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INÊS MARTO

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Fibromialgia: Rita Ribeiro e a nova perspectivação do corpo | Opinião

 
A actriz Rita Ribeiro esteve esta manhã presente no programa Você na TV, na TVI, onde conversou com a apresentadora, Cristina Ferreira. Há dois anos atrás, Rita Ribeiro foi diagnosticada com fibromialgia, facto que revela agora pela primeira vez.
A minha experiência no que concerne ao meu relacionamento e perspectivação com o próprio corpo, nas suas limitantes mais óbvias, prende-se com a paralisia cerebral, nada tem a ver com fibromialgia. Portanto não é sobre as doenças em si que pretendo opinar. É, antes, sobre o discurso de Rita Ribeiro e as reacções maioritariamente adversas que recebeu.
Desde logo, a revelação do diagnóstico surge como uma surpresa generalizada, sobretudo por Rita Ribeiro se ter mantido sempre no activo e a dinamizar permanentemente novos projectos, ao longo dos dois anos em que já lida com a doença. A própria diz que a sua presença no programa tem o intuito de servir como voto de esperança para as pessoas.
A indignação de grande parte do público demonstrou-se em pessoas que sofrem de fibromialgia e se sentiram mal representadas, chegando mesmo a acusar a actriz de ter dado um testemunho pouco verdadeiro, pouco fiel, ou a indignarem-se pela promoção do trabalho artístico, ou pelo acesso a tratamentos dispendiosos, ou pela "leveza" com que a mesma relatou a situação.
Postas as cartas em cima da mesa, volto a dizer, crédito para falar de fibromialgia tenho zero. Agora tenho, isso sim, enquanto pessoa com paralisia cerebral com 22 anos, uma visão já algo solidificada sobre a representação nos media daquilo que são doenças crónicas, afectantes da parte neuromuscular, que nos levam forçosamente a ter que perspectivar de alguma forma o próprio corpo, todos os dias, por sermos constantemente lembrados da sua existência na dificuldade de movimentos ou na dor.
E, como tal, parece-me absurda a grande maioria dos comentários e a maioria das acusações, muito sinceramente. Ora, se é ponto assente que a doença se caracteriza pela multiplicidade de graus, logo aí não faz sentido o backlash com que a acusam de um testemunho pouco verdadeiro.
O mesmo acontece em relação à paralisia. Não existe tal coisa como uma representação pouco legítima de uma doença que é tão múltipla. Existem sim representações mais ou menos estereotipadas, mas, sendo que cada caso é um caso, será sempre mal representado para alguma parte dos visados, inevitavelmente. Sim, também me chateia que muitas vezes a imagem da paralisia cerebral se prenda com pessoas com a mobilidade de tal forma reduzida que não seguram a própria cabeça, têm movimentos involuntários, babam-se, etc.
Mas a realidade é que existem. E o problema não está em que eles estejam a dar a cara, está sim em que o restante espectro não seja abordado. Está sim em que não se dê visibilidade ao facto de nem todos serem assim. Está sim na falta de conhecimento generalizado da população. E isso não se combate insultando as pessoas que dão a cara, nem pondo em questão a legitimidade disso. Isso só se consegue combater mostrando que também existem mais, não obstante desses - mais graves ou menos graves - que foram representados no momento. Toda e qualquer representação de uma doença que se manifesta em pluralidades contribui para a noção da existência dessas mesmas pluralidades. E a comunidade deveria, penso eu, apoiar, e partir daí para informar do resto. Em deitar abaixo não há ganho absolutamente nenhum.
Mas não acaba aqui. Não é preciso conhecer Rita Ribeiro muito a fundo para se perceber que é alguém espiritual e emocionalmente muito apurada, sensível e inteligente, basta que a ouçamos. Como tal, abordou as consequências do plano emocional no plano físico. Não é, infelizmente, uma equação óbvia para a grande maioria, e talvez um dos grandes problemas da humanidade esteja aí. Levaram o discurso como se desvalorizasse a questão e não retratasse a realidade como o problema sério de que se trata. Os títulos sensacionalistas só desajudaram e só levaram a que muita gente, pelo que se lê nos comentários, saltasse para conclusões precipitadas.
Rita Ribeiro disse ter sido uma bênção ter sido diagnosticada com fibromialgia, verdade. O que a grande maioria se está a esquecer de abordar é o contexto em que o disse, e que explicou imediatamente a seguir. E que, como pessoa com paralisia cerebral, tenho que concordar. Disse-o no sentido em que teve que passar a ter muito mais atenção a si mesma e ao seu corpo. E esta realidade é um facto, como dizia acima. Quem sofre deste tipo de situações neuromusculares, e aqui tenho o meu conhecimento de causa, jamais se consegue esquecer do próprio corpo. É forçado a perspectivar-se. É forçado a encarar-se todos os dias.
A grande diferença é que Rita Ribeiro escolheu tomar isso como estímulo para uma mudança positiva na vida. A grande diferença é que não se deixou abater. Nem tão pouco apontou o dedo a quem tem outra forma de lidar. Aliás, como a própria respondeu publicamente:
 
 
 

Não vou entrar em competição com quem tem mais ou menos dores! Nunca pensei tornar público um assunto que é da minha vida pessoal, mas quis partilhar soluções que na minha experiência me fizeram ter uma melhor qualidade de vida! Em qualquer questão o que todos nós seres humanos precisamos é de soluções! Mas é o meu ponto de vista e respeito todos os outros! Desejo as maiores felicidades para todas estas senhoras, mas ocorre-me dizer que “destilar” azedume não contribui em nada para a nossa saúde!

 
Falou sobretudo da influência que o bem-estar espiritual e emocional podem ter na forma de combater as agravantes físicas. Não vejo qual é a parte ofensiva nisso. Não vejo qual é a parte ofensiva na promoção de um estilo de vida saudável e equilibrado enquanto, isso mesmo, tentativa de equilíbrio face ao resto.
Resultou no caso, óptimo. O que penso que devia haver era felicidade por um caso de quem está a batalhar para contornar e a conseguir. Da mesma forma que não condenou quem recorre à medicina convencional, da mesma forma que não se disse dona de nenhuma verdade absoluta, não entendo porquê isso estar a acontecer de forma tão exacerbada do lado contrário.
Falo por mim, no dia em que vir alguém a falar de paralisia cerebral, relacionando-a assim com a vertente emocional, mostrando assim que há caminhos pelos quais, embora não revertendo, se torne mais fácil  suportar ou contornar, o mínimo que me vejo a fazer é aplaudir, e ter espírito aberto para tentar, ou se vir que não é para mim, por, lá está, cada caso ser um caso, aceitar como parte da multiplicidade.
Mas, como sempre, estamos a mostrar-nos Portugal: onde se é preso por ter cão e preso por não ter. Se o testemunho fosse de alguém que levava a questão de uma forma pesada, vitimizando-se até como acontece muitas vezes, não iam faltar discursos de ódio porque "lá vem a história da coitadinha". Agora que acontece o testemunho de alguém que transforma a dor em algo positivo, porque conseguiu - e ainda bem, tomara que conseguíssemos todos - têm vergonha da representação da doença e falta um testemunho verdadeiro? Como se ela tivesse chegado com discursos dogmáticos sobre o que quer que fosse... Limitou-se a partilhar o que para ela deu resultado. Que mal traz isso ao mundo? A mim parece-me é que falta, como tenho dito, humanidade.
 
 
 

André Mendonça | Entrevista a Inês Marto

 

1. Inês, em primeirolugar foi uma surpresa imensa ver um artigo de alguém com deficiência num sitede notícias LGBT português e com tanto em comum comigo.  De que forma encaras o mundo lá fora? Como teencaras pertencendo a três minorias: ter deficiência, ser LGBT+, e serpoliamorosa?
 
O mundo “lá fora” é… uma dicotomia muito grande. Por um ladohá imensos esforços para a mudança de mentalidades a acontecer, o activismo écada vez mais. Por outro lado, a emergência de novos grupos “anti” também meassusta. Têm crescido grupos com um ódio desmesurado a pessoas, por estaremsimplesmente a ser pessoas, de forma completamente absurda e isso épreocupante. Precisamos de mais união e menos mesquinhice urgentemente, paracombater isso.Quanto à forma como me encaro a mim mesma, acho que énatural. Nunca fui outra pessoa, não saberia o que é não ser eu, tentei lidarcom as minhas realidades à medida que elas se revelaram, como tentamos todos, epenso que não me tenho saído mal… (risos)
 
 
2. Depois do teuartigo publicado em Julho no Dezenove.pt, qual o feedback que recebeste? O teuartigo é o único publicado até hoje no dezanove acerca de LGBT+ comdeficiência, como encaras esse facto? Há ou não muito ainda por fazer?
 
Há muito ainda por fazer, sim, claro que sim. Começando pelodespudoramento sobre os nossos corpos, sobre os nossos padrões físicos, sobre anossa condição humana. E digo isto muitas vezes também em relação a nós mesmos.Há ainda muito por fazer em termos de auto-exploração, de nos descobrirmos paranos sabermos também retratar, para conseguirmos depois mudar os paradigmas queinfelizmente existem. Acho que trazemos, além das batalhas físicas, um trabalholatente de auto-melhoramento connosco, para nos conseguirmos expandir a pontode nos podermos expor, para tentar estas mudanças. É preciso coragem, mas podeser que consigamos abrir caminhos.
 
 
3.  Quais foram as situações mais complicadas quetiveste durante a tua infância e adolescência tendo deficiência? Tiveste deamadurecer e encarar a vida de outro modo, comparativamente a alguém semdeficiência na tua faixa etária?
 
Essencialmente o bullying e as repercussões que teve em mim,em termos de autoestima e confiança. Isso foi a parte mais complicada. Além dasdores físicas e das frustrações, claro. E o facto de ter que encarar que secalhar a minha realidade não ia ser das mais genéricas. Mas depois aprendi a irvendo essa parte como uma vantagem, às vezes até uma arma, levei o meu tempo.Tem a ver precisamente com isso, com esse amadurecimento. Mas não tenho acerteza se amadureci por causa das condições físicas, na realidade. Promovemoutra forma de olhar a vida, claro. Mas sempre me senti uma alma velha, até emquestões que não tinham nada a ver com isso. Já era naturalmente desadequada àminha faixa etária. Isso talvez tenha impulsionado mais, mas penso que fazparte da minha essência. E acho que ainda bem.
 
 
 
4. Qual são os  teus maiores desafios na vida diária?
 
Sem querer ser demasiado lírica, acho que o meu maiordesafio diário sou mesmo eu, enquanto pessoa, e a minha necessidade de reinvençãoconstante, muitas vezes pode ser desgastante, isto de “brincar” com as minhaspróprias linhas como (esperamos) meio de vida, mas, além de ser compensador, émesmo uma necessidade. E depois, tirando isso, são as minhas ansiedades, osmeus pânicos, o não saber se o meu corpo hoje vai resultar, se ficar sozinha sevou conseguir desenrascar-me… apetecer-me apanhar um avião para o Tibete e nãopoder… (risos) é… não poder viver às três pancadas, despreocupadamente…gostava, pelo menos de experimentar um dia, sair do survival mode um bocadinho e respirar.
 
 
5. Achas que existeuma total falta de visibilidade das pessoas com deficiência em Portugal? Epessoas com deficiência LGBT+?
 
Das pessoas com deficiência não diria, já existe gente adesbastar caminhos, felizmente. A Mafalda Ribeiro, por exemplo, o SalvadorMendes, o Paulo Azevedo, a Diana Bastos e o trabalho que se tem feito nacompanhia Vo’arte, acho que pode mudar muita coisa. Agora em relação a pessoascom deficiência LGBT+, a história é outra… e infelizmente mais funda do queisso, começa logo no reconhecimento de pessoas com deficiência enquantoindivíduos com dimensão sexual existente. Felizmente há páginas como o Sim, nósfodemos que têm feito esforços para mudar isso. Mas, nesse contexto (aindamuito pequeno para o que devia) ainda é tudo muito heteronormativo. Esperoconseguir mudar alguma coisa nisso.
 
 
6. O que achas quepoderíamos fazer em conjunto para mudar esse paradigma da visibilidade ?
 
Unirmo-nos. Eu sei que regra geral não é bom sermosestereotipados todos como estando no mesmo saco, mas neste caso particulardesta minoria dentro da minoria, acho que é urgente unirmo-nos, paraconseguirmos alguma evolução da sociedade. Deixarmos de ser exemplos tãopontuais. Termos uma “pegada” concreta. Acho que a nossa surpresa em nos termosencontrado um ao outro fala por si sobre o quanto isto é necessário.
 
 
 
7. Na tua opinião,como lida a sociedade com uma pessoa com deficiência?  Tendo fluidez de género, e ainda sendoLGBT+,  isso traz mais pressões para aforma como os outros nos vêem?
 
Não sei bem se lida com medo, se com desconhecimento. Queroacreditar que grande parte das vezes o desconforto das pessoas é genuinamentepor não saberem como reagir. E isso só se combate com a visibilidade de queestávamos a falar, até que caiamos em lugar-comum. Sendo gender-fluid e tendo asexualidade que tenho… talvez provoque estranheza, sim. Nunca senti que se “acumulassem”,digamos assim, uma à outra, essas pressões. Mas talvez provoque estranheza porse calhar nem passar pela cabeça das pessoas a hipótese, lá está, por falta derepresentação.
 
 
8.  Qual é o teu maior sonho?
 
Paz de espírito! (risos)… não sei, podia dizer felicidade,mas não vejo isso enquanto meta. Gostava muito de sentir sempre que tenho umpropósito na vida. De poder sempre dar de mim à arte, de ser uma pessoa maisdestemida, um bocadinho mais leve (não totalmente, não gosto muito de medescomplicar a 100%, perco a “veia”), gostava de me sentir livre, em todos osaspectos. E de um dia olhar para trás e ver que consegui tornar-me na pessoaque vim ao mundo para ser.
 
 
9. Se pudesses mudaralguma coisa em relação à forma como o mundo olha para as pessoas comdeficiência, o que seria e porquê?
 
Mudava a forma como as pessoas se olham umas às outras, noseu todo. Ou melhor, tentava que se passassem a olhar, mais, acho que é issoque falta. Não está na forma de olhar, o problema, está é no acto sequer de nosolharmos, que existe tão pouco, se isso passar a acontecer, com verdade, oresto virá por acréscimo.
 
 
10. Na tua opinião oque é que poderia tornar a vida de uma pessoa com deficiência, melhor?
 
Dependerá muito, caso a caso. Mas muito disto que dissedaria para esta resposta, de alguma forma. Termos um mundo que nos considereexistentes e se adeqúe. Olharmo-nos, e olharem-nos, com verdade.Auto-aprofundarmo-nos, acreditarmos em nós, nunca perdermos a capacidade desonhar… Aceitarmo-nos da melhor forma que formos sendo capazes. Encontrarmos onosso propósito e lutarmos por ele como se a nossa vida dependesse disso, quemuitas vezes depende mesmo. Unirmo-nos. Unirmo-nos. Unirmo-nos.