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INÊS MARTO

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Tornar-me arte | tatuagens como libertação do corpo

A procura é incessante. Insaciante. Nunca sabemos como vamos acordar amanhã. Fluidez de género é uma viagem permanente. Não estou a ser poética. Não estou a ser poético. Também não vou dizer que é um calvário, tem o seu quê de belo, a permanente metamorfose que nos acontece dentro. Vou aprendendo a gostar-me, nas minhas múltiplas vertentes e nos limbos delas, um dia de cada vez, um momento de cada vez. Bigender fluid - bigénero fluido - se tivesse que ter etiqueta era essa.
 
 
 
Oscilo em muita coisa. É apenas mais uma, que sempre me foi tão natural como respirar, ou talvez mais, respirar já teve vezes de ser um problema, isto nunca. O único senão é a disforia. Crava-se como facas. Não a tenho só de género, tenho-a de capacitismo também, em relação ao corpo funcional, hábil, fisicamente capaz, de mobilidade normativa.
 
Olho o corpo que não queria vezes sem conta. Não me corresponde. Não me parece meu sequer, tem vezes que pareço ter que acordar-me, reavivar essa sensação de pertencer à pele, ou tudo resta com a noção de sonho - às vezes pouco - lúcido.
 
Tem dias que queria ter barba. Tem dias que queria ser diva. Todos os dias queria pernas. Todos os dias queria asas. Quase todos os dias acabo por inventá-las. Tem dias que queria ser esteticamente escultura. Tem dias que desejava que houvesse o referencial do que pode ser um corpo bigender fluid, não comprometedor de nenhum dos meus polos. Tem dias que acho que o encanto de eu ser eu é não ter solução.
 
 
 
 
Desenquadro-me. Potencialmente de cada vez mais maneiras. É o que é ponto. Parece que não nasci para ser linear. Tem dias que já penso sorte a minha, pode ser que carregue comigo algum dia a bandeira do humanismo despudorado, se continuar a aprender a beijar as minhas próprias feridas.
Não, não sei se vou parar de engordar. Síndrome do ovário policístico (PCOS) e prolactina alta (hiperprolactinemia) -devíamos ser mais a falar disto, com urgência. Não, não sei se me vai apetecer depilar-me todos os meses. Sim, a testosterona tem a ver com isso. Em metade da disforia sempre ajuda. Pois não, não faço o exercício que devia. Nem que o fizesse, nem que tivesse as pernas como queria para isso, dadas as estatísticas muita sorte tenho eu em não estar pior.

Tem dias que gostava de ser magra (muitos, demasiados). Tem dias que me martirizo. Tem dias que não queria ter o peito assim (muitos, demasiados), em metade da disforia desajuda. Sim, PCOS tem a ver com isso. Falta de progesterona tem a ver com isso. Hiperprolactinemia tem a ver com isso. Com isso e com mais uma longa lista de complicações. Não, não me chegava ter só um problema. Se calhar chegava, mas vou dizer outra vez, é o que é ponto.
 
 
 
 
"Não sei o que sou, sei que me sinto dispersa. Não sei o quequero que saibam de mim. Sei que queria deixar de ser presa pelos fantasmas queprovavelmente criei: do não saber já sonhar, do ficar agarrada à vida pelaesperança de um qualquer fio de prumo que me tire do meu vazio ou me estendapelo menos uma mão na escada (talvez seja ela, se não se afastar com este meunão ser nada), do querer aceitar o corpo e todos os dias chorá-lo porque não osinto meu, porque não me sinto eu, porque não me correspondo, porque não seiquem sou, mas sei o que não sou e que muito disso me habita. Do sermulher-homem sem ter a certeza até que ponto hoje e amanhã. Do quase nuncaolhar nos olhos pela ferida enraizada de que não mereço gente comigo, masqueria. Do querer falar e não sair a voz. De me trair o pânico de ter queexistir e fazer ocupar no mundo o meu espaço, o medo da minha bolha de solidãoser interpelada e que me vejam o caos que nem eu sei, que se nota nos meusbraços que se fecham, na minha cara espástica, na minha voz sufocada àtentativa absurda de quebrar o silêncio, cada vez que me olham nos olhos."
Escrevi algures e resume bem onde quero chegar. A procura é incessante, dizia. Mas encontrei uma tábua de salvação. Contra não caber nas caixas da sociedade, não só quis começar a pensar fora delas, como as decidi ir desfazendo com unhas e dentes; não obstante ainda lutar muitas vezes comigo mesma, não sejamos hipócritas e falsos moralistas, mas começo a resolver-me.
Tábua de salvação, dizia. Tornar o meu corpo não higienizado pelos padrões um estandarte do não-binário, antes de ser fotogénico, antes de ser comercial, antes de corresponder ao híbrido que afinal sonhava ser. Deixar de procurar ser estátua polida, acrobática. Antes tornar-me espectro. Antes deixar de importar a (dis)forma do meu corpo. Antes deixar de ser corpo. Passar a ser dança, espástica mesmo, presa mesmo, fazer dos limites o meu próprio padrão de beleza, deixar de me encaixar nos vigentes. Não querer mais ser vigente. 
 
Antes deixar de ser corpo, dizia. Passar a ser arte. Cobrir-me de tinta, de tatuagens. Tornar-me livro feito pele aos poucos que me sabem ler. Antes passar a ser bandeira aquilo que realmente escolho que me representa. Aí sim. Ter-me como proa, porque passo a ser obra, não padecerei de correcções inerentes a padrões externos. Nada mais importará. Serei sereia tatuada. Tornada signo de pássaro livre. Oxalá consiga. A minha libertação será essa, quero acreditar que sim, tornar-me eco da minha alma, grito do despudor. Assim, cobrir-me de tatuagens devolver-me-á a mim. Passo a passo.
(Imagens: screenshot frames de performance por Inês Marto)
 

Asas e tinta na pele | Frida Kahlo by Bilotta Tattoo

 

 
 
 
 
 
O tal Sábado que nunca mais chegava. 7 de Outubro. Nuncatinha tido processo destes tão talhado pela doçura como aconteceu com Igor, quefez o atendimento virtual de Bilotta Tattoo (da Don't Cry Collective). Sentia-me em casa, antes sequer de terchegado, e não, não é exagero.
 
Quem é Bilotta? Pois bem, chegou a mim de surpresa. Como foisempre, esperava um sinal do universo de quando e como tornar derradeira em mima auto libertação de que tinha escrito o manifesto recentemente. Sabia que aresposta era Frida. Encontrei Bilotta Tattoo no Facebook, quando não procuravasequer, nesse compasso de espera. Apaixonei-me. “O tatuador mais fixe do Rio de Janeiro”,estava escrito. Não tive dúvidas porquê. Até self-tattoos ele tinha feito, deperder o ar.Ficava em Lisboa até ao fim do mês e zarpava. Era a vida a dizer-me que eraagora. O caminho fez-se.
 
Batiam as quatro da tarde certas, quando cheguei ao estúdio.Nervosismo nada, por mais estranho que fosse. Bilotta sorriu-me enquanto saíado carro. Os meus olhos brilhavam, tenho a certeza. “Então, me fale de Frida, me conta.” – abriu-se mundo ali.Falei dela como se fosse eu, falei de mim como se fosse ela, não sei bem ondese apaga o nosso ponto de fusão na verdade. Olhei Bilotta nos olhos, comoraramente faço. E ali havia verdade. Tanto foi que não tardámos a falar de fadosequer. E se precisasse de mais certezas de que tínhamos o mesmo comprimento deonda, estavam ali.
 
Desenhou em mim o primeiro rascunho. Disse ele que era só aparte de criança a divertir-se com uns rabiscos. Frida foi baixando em nós.Conversámos como se nos conhecêssemos há anos. Bilotta teve uma facilidade demestre em ver-me para além do que se vê mais imediatamente. O processo todofluiu. A energia toda fluiu. Mostrei-lhe Raquel Tavares. Ouvimo-la. Falei-lhede Alfama, também se tinha apaixonado já. Mais uma prova de que era dos meus.
 
E entre dedos de conversa sobre arte e existências,estudámos Frida, vi-o absorvê-la, enquanto me agradecia várias vezes o presentede fazer isto. Aquele não sei quê de onda gigante que une os que são desta raçaestava ali, diante dos nossos olhos. Captou-a. Amor à primeira vista.
 
À primeira linha disse “Que Frida esteja connosco.” E esteve,se esteve. Seis horas passaram. Uma eternidade xamânica. Uma dor demetamorfose. Lágrimas na linha de transbordo às vezes, por cada ponto de asasque se fazia pele. Outras vezes uma tranquilidade quase transe. Estou quasecerta de que nas nossas respirações estavam até entrelaçadas. Olhávamo-nos nosolhos um ao outro e estava ali patente – a força de Frida, a minha libertação,a arte que só se faz com esta entrega.
 
Bilotta deu-me as asas. E tenho a certeza que o soube tãobem quanto eu. Estava na cara. Estava na pele. Estava naquelas palmas quebatemos e que pareceram ecoar por Lisboa inteira quando levantou a agulha doúltimo ponto, era uma da manhã.
 
Se Frida esteve connosco? O que havia de Frida em nósemergiu ali. Foi isso que nos atou os laços, estou certa. Bilotta ficou umamigo. Pouco me importa o imediatismo com que o digo, abri-lhe a porta à minharaiz. E ele, com a sua arte elevada, deixou-me gravada a certeza que não mehavia de esquecer da força que essa raiz tem.
 
 
“Pies, para qué los quiero si tengo alas pa’ volar?”escreveu Frida no diário, corria 1953. Foi a frase que deu mote a isto tudo.Meta-voo dos meta-voos… Frida tornou-se as asas ela mesma. Foi dia demetamorfosear-me, ode à auto libertação, manifesto na pele, se foi. Saí alada.