"A luminescência das águas não afasta a saudade da transversal falésia. Quiçá me tenha traído a avidez em pernoitar nos umbrais desse naufrágio, Mas poderei julgar-me culpada, se em verdade só quis padecer de amor? Peguei pela mão o reflexo, prenúncio de romãs entre os escombros E o superlativo fôlego revelou-se em negativos celofanes, Difusos os contornos dos corpos na travessia insubmissa da consumação E o sabor das bocas e dos astros e das esperanças diluídas num só gesto, Essa eternidade que se resumia num ardente pavio a dispensar o amanhã. Mas nem só dessa translúcida sede vivem os poetas e os loucos. Não me resta sal nas lágrimas para a madrugada impoluta que se acendeu E em cada grito sangra um lírio erguido à indelével renascença Disseco o peito, inequívoco relento da torácica consciência E sei-me florescente pérola de poética suficiência."
My body is a room full of ghosts Its walls made of frail bones, cracked stones Broken light rays hazing through the holes, made-up windows Violet and green hues collide, neon existances side-by-side Contrasting wolves fight for expression In a crystal chamber of ressurection Ever-changing shadows, they fill my soul Daunting growls of fear echoe through my skull My heart's an ever expanding bomb ready to collapse Counting my final days by a stop-motion time-lapse As I sit still hallucinating by the sea The wolves, they fuse themselves psychadelically In the dark room of dispair, their sillouettes embrace Ether floods the air, body seizes, there's no place Nowhere, no clocks, seizure of shattered bones and rocks The void of materiality bursts finally Violet and green they set me free
Há dentro de mim ruínas invisíveis. Ossos do ofício de me desmoronar como um trago para essa sede maior. Coliseus devolutos do circo de feras de pedra que me dançam na cabeça. Saltas o muro. Não te afligem os destroços. Caminhas no meu abandono como palma da tua mão. Apanhas do chão as pedras caídas do meu trilho. As que se fizeram cicatrizes insolúveis. Olhas-te ao espelho partido que sobreviveu à erosão. Toca-lo. Revês-te. Fundes-te. Mostras-me as estátuas do teu circo. Ambas cobertas do pó e do musgo de que se faz a solidão. Na tua alquimia de ser humana, fazes das minhas pedras perdidas bolas de sabão entre os teus dedos. Agarras-me. Envolves-me. Sem dizeres mais, jogamos de caras no mesmo tabuleiro de contrastes. Ensinas-me o xadrez de estar viva. Descobres-me o mundo por dentro dos olhos, descobres-me a vida por dentro da pele, descobres-me o perfume por dentro da alma. Passeias na minha distopia como uma primavera sem relógios. Vais-me tacteando as peças. A tua distopia é uma praia rochosa. A minha um antro de anseios caído aos céus. Sento-me escondida entre as tuas rochas. Observo-te o mar. Absorvo-te. Aprendo-te. Temos a pedra em comum. Ao sabor do nosso vento, há um jardim junto ao mar onde se plantam as estátuas da nossa fraqueza. Erguer um trono ao vulnerável, torná-lo fogo a céu aberto: esse é o nosso acto de amor. No nosso circo de pedra, só esperamos uma coisa: verdade. Já tenho onde cair viva.
Visitas-me o vácuo remanescente da condensação involuntária que se fez em mim. Pisas com passos cautelosos de silêncio o chão de mim, feito de restos de tempestade. E no sentir-te chegar sobre a madeira do meu quarto desamparado fazes suscitar mais vida e mais tamanho. Fazes-te música ao ouvido das minhas ânsias. Agigantas-te em mim, como uma onda tatuada na clavícula trave-mestra da minha solidão. Puxas de mim fios que entrelaças nos teus. Dos meus olhos sobram lágrimas escondidas para que nunca mais acabes. Dou-te a pele inexplorada, a que só tocaram os meus desgostos. E, na tua trascendência, fazes do meu limiar a janela destrancada por onde me vês como gostava de ser. A voz de terra que se incendeia forma em mim balões dissolúveis, convidas-me a percorrer-me sem latitudes. Observo-te, escudada entre o corpo e o precipício que o separa de quem sou. Do teu porte gostava de saber fazer desenhos, como os pinto mentalmente. Bebo taças da tua visceralidade debruada a pérolas, escondida nos cantos mal iluminados de mim. Toco-te. Faz-se mundo. Tento respirar. Deixo que me invadas. Preenches a queda entre o nevoeiro onde me habito e a verdade. Desamarro as cordas. Há consonância na voltagem dos nossos tempos-sonhos. Deixo que me inunde a tempestade que trazes contigo. Descubro novas paredes à minha casa devoluta. Encostas-te a elas, deixas-te sentar no chão. Acompanho-te. Traço-te e acaricio-te as raízes, no longe de onde venho. No fim do mar abraçam-se. No fim do mar somos mais.
Amanhecer e um deserto verde. Luminosidade expansiva perpétua flui pelo tecto do nada. Árvores retorcidas ásperas espalhadas à toa. O ensurdecer do pensamento. Prédios de néon transbordam o desvanecer da noite. Viagens incessantes. Estradas fora. Rumos sem fim perante os olhos que se deixam ultrapassar parados. Gente desenfreada e um deserto verde. Ao fundo, o vulto branco de arder gaseificado luminoso torna-se silhueta de um rapazinho sem nome. Lá nas colinas do deserto verde, do outro lado da estrada. Talvez o rapazinho sem nome que gostava de ter sido. Da árvore mais pequena e menos longe dos olhos faz sem pudores um varão. Do corpo etéreo fundem-se a roupa e o nu, a superfície e o núcleo: é feito do cíclico aflorar de essências e pulsões, do resto quase nada importa. Passa a ponta dos dedos e o sexo pela aspereza do tronco, olha-me destemido. Passa a língua lenta pelos lábios, sem que se lhe note rasto. Sem desviar os olhos, toca todas as árvores pelo caminho, varões da infindável noite de que faz coroa de existir, e que faz espelhar aos poucos - talvez nenhuns - que o conseguem ver. Salta o muro com as pernas sedutoras. O vulto luminoso - rapazinho branco - define-se aos poucos. O contínuo aflorar define-se em forma-corpo, múltiplo. Atravessa a estrada sem olhar, imune às prisões mundanas. Caminha como quem continua a dançar. Ao fundo permanece o deserto verde. Estende-me a mão como quem seria capaz de me tocar - definem-se os dedos, funde-se comigo por segundos - Abraça-me as costas - definem-se os braços, aquece-me como se fosse verdade - permanece sem cara, permanece sem imposições, permanece caleidoscópio do que quer que queira ser. Rapazinho branco permanece livre, metafísico, meta-sexo. Encosta a cara no meu ombro, sinto-lhe a barba - que naquele momento lhe apetece ter - segreda-me ao ouvido: Bernardo. E esvai-se. Sobra amanhecer e o deserto verde onde habita, mas só quando lhe apetece.
Ultrapassemos a estranheza dos corpos. Saibamos a detalhe as nossas unhas e o eco dos corpos fundidos um no outro. Façamos da boca pares de pétalas cadentes com que celebramos a reciprocidade da noite. O tempo externo teima em ser câmara lenta e os teus dedos tecem-me bordados inéditos por dentro dos órgãos, contorcidos na gastrite de ser só. Cola em mim a electricidade que trazes nos olhos, não desfaças, espalma contra os limites do meu existir os teus suspiros feitos vapor contra a madrugada branca da minha pele nua. Suprime os passos na areia grossa, passa o sal pelos cabelos e passeia o desenho fluido do teu corpo na contra-luz da alvorada, de encontro à espuma rarefeita do mar onde costumamos vir para despejar segredos, no permanente vaivém das ondas que um dia gostava que me levassem para longe. E ainda que não existas, não me negues a eterna quimera de um sonho, caminha comigo, com os dedos frágeis cortados contra as rochas de braços abertos e de peito livre. Ainda que não existas, ultrapassemos os horizontes da carne. Ainda que não existas, faz-te cinza e que do queimares-te se levante ar quente, que se erga aos céus e se faça o meu perfume. Consome-me. Ainda que não existas, por-te-ei no pescoço e atrás das orelhas e esfregar-te-ei, na fricção de ambos os pulsos onde gostava que pudesses vir dar beijos, como que promessas que não te abandono na terra dos vivos. Ultrapassemos a estranheza dos corpos. Porque ainda que não existas, talvez seja a nossa inexistência o subterfúgio onde me reanimo melhor.