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INÊS MARTO

INÊS MARTO

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Os processos emocionais no contexto performático

 

A dissecação dos ciclosemocionais de raiva, ansiedade e subsequente aceitação pessoal, a partir de Giovanni Frazzetto, aplicada à construção da performance (Unbreak)able.

 
(Unbreak)able - draft
A performance (Unbreak)able teve como mote e como ímpeto criativo desde sempre abase cíclica e circular em que me afundo e afloro. Em que convirjo comigo,colido comigo, mergulho em mim e depois me elevo.
Esses círculos, esses ciclos, sãotanto a base da minha autoconsciência como, por consequência directa, da minhaarte que é objecto disso mesmo. E reflexo disso mesmo.
No caso específico da performanceescolhida como termo de análise dos processos emocionais subjacentes à criação– (Unbreak)able – as causas dessesmesmos ciclos e aquilo que em mim os aviva foram desde logo questões que tiveque explorar, chegando a motivos concretos, que pautam todo o percursoemocional.
Assim, escolhi assentar a minhaautoexploração nesses gatilhos emocionais concretos, por uma questão deexistência de um caminho delineado, com uma mensagem artística a passar, queconsiderei essencial à realização do trabalho performático.
Tratam-se de variantes diversas. Mastodas convergentes num denominador comum: a forma de me olhar a mim própria eas consequências disso. Mais pormenorizadamente, aquilo que nisso implicamquestões como a minha diversidade funcional – a chamada deficiência – e como meleva a perspectivas diferentes sobre o meu corpo e a forma como com ele merelaciono; a minha expressão de género, que é também factor determinante desseprocesso e até mesmo a minha sexualidade, onde tudo isto se reflectedirectamente.
Todos estes factores corroboram umquadro geral de como sinto e penso quando me olho ao espelho, ou quando metorno consciente de mim, quadro esse que tentei transpor para o trabalhoartístico variadas vezes, entre elas a performance (Unbreak)able.
Esse é o tal quadro que digoacontecer de forma cíclica ou circular. Esse é o tal quadro que em mim traz aarte quer enquanto escape quer enquanto espelho.
Procuro aqui, na análise de How we feel, de Giovanni Frazzetto,explorá-lo nos seus prismas psico-emocionais e biológicos para uma aproximaçãomais científica, para assim conseguir dissecar e deixar explícito de melhorforma esse que é o complexo mecanismo que acaba por me pautar em tanto do quesou.
Inicio a análise por onde a iniciatambém Frazzetto, no seu primeiro capítulo, “Anger: hot eruptions”.
Frazzetto começa logo por tocar numponto realmente interessante: “Anger is also fear with an armour. It works as a defensive, pre-emptive reaction beforesomething hurtful can be done to us.”1
Essa afirmação da raiva ser tambémmedo com uma armadura leva-me a considerar, primeiro que tudo, a raiz dafrustração e raiva que expressei como parte primeira da performance.
A reacção de revolta para com o meucorpo físico assenta essencialmente no medo da fragilidade que lhe é inerente.O medo dos obstáculos que isso me pode trazer de futuro, como até aqui tantasvezes trouxe.
O medo que é consequência justificadade o mundo não estar preparado para os nossos corpos não-normativos, para anossa diversidade funcional. E o desamparo que isso nos traz, o nunca saber porcerto como é o amanhã, se não tivermos ninguém. O ninguém ser garantido, nempara nós nem para os outros. E neste caso, a sobrevivência não ser,consequentemente, garantida, também.
E a frustração que isso nos traz, pornos lembrarmos a cada movimento consciente do fio de dependência física que lápermanece. E de, no fundo, nem sabermos como vamos ser, quem vamos ser nósamanhã, e em que padrão físico nos vamos reger. Já que, para nós, nem nósmesmos trazemos manual de instruções que nos valha.
Se um dia corre suavemente, talvezconsigamos cozinhar o almoço e lavar a loiça – é como quem diz escalar umamontanha, e talvez no fim nos sintamos válidos. Mas se, por outro lado, um diacomeça menos bem, desde logo sair da cama se torna uma missão impossível. Desdelogo o corpo não reage, desde logo a força não chega, desde logo tudo cai aochão e muitas vezes a nossa força também.
E desde logo não resta outra hipótesesenão colocar essa armadura que a raiva impõe ao medo. Aproveitar a explosão derevolta, do porque é que nos acontece a nós se não temos culpa de nada, edeixar que nos comande a força.
E, bem ou mal, sair da cama, mesmosem que nesse dia o corpo nos permita força para mais do que nos fazer refénsda cadeira-de-rodas, a mesma que nos outros dias é um par de asas.
E ainda assim, de pijama, descalços ea contentar-nos com o pacote de bolachas que conseguimos alcançar, fechar aporta do quarto que deixamos para trás das costas e seguir vida. Mesmo que nasnossas quatro paredes. Mesmo que a não ter outra coisa por ímpeto nesses diasque não fazer da nossa própria dor uma porta, escrever sobre ela, pensar sobreela, mergulhar nela e dissecá-la.
Talvez então chegar à arte. Talvezentão chegar a outras asas. Talvez um artigo, talvez uma performance, talvez umpoema. Seja como for, uma semente, seja como for, qualquer coisa para que ocustoso sair da cama não tenha sido em vão.
No caso, a raiva e a ansiedade estãointimamente ligados. A raiva é consequência dessa ansiedade, desses medos. É aexplosão dela que faz tantas vezes com que não nos reste outra coisa senãocontinuar em frente.
A ansiedade, contudo, parece-me serum processo menos linear, e sem a compensação de trazer consigo a força. Aansiedade é muitas vezes paralisante. E é também muitas vezes causada pelaraiva.
O caminho é bilateral. Se por um ladoleva a ela, por outro lado o atirar ao abismo em que a raiva nos coloca, podemuitas vezes trazer novas situações de desamparo em que a ansiedade escala,levando-nos ao poço de dúvidas que nos assola.
DizFrazzetto, no capítulo terceiro, que dedica à ansiedade: “If examined carefully,some of those worries sound ridiculous, or unnecessary to say the least, don’tthey? Yet, alone in the darkness of my bedroom, I didn’t seem to have muchcontrol over them.”2.
“I began to worry about themeaning of all I had done, whether or not I had taken the right decisions inlife . It was one of those moments when I thought I needed to do everything atonce, as if the world were about to end and I only had a few hours left toaccomplish all I had ever wanted to do.”3.
Mas a ansiedade também, no contextoda segunda parte da performance, mais raízes que não estão apenas ligadas àideia longínqua de um corpo funcional.
Prende-se muito também com o corponão-normativo na expressão de género, a fluidez de género, o não binarismo, omedo da exclusão social que, além do resto, isso também me traga, que me leve àsolidão – solidão essa que se torna mais assustadora ainda se considerarmostoda a explicação anterior – o medo da minha dimensão enquanto ser sexual nãoser reconhecida, o medo do desconhecido dos outros face a mim nesse contexto eque isso os afaste, como muitas vezes me chega a afastar a mim, por disforia epor revolta da distância face aos ideais.
“Fear has a specific target.What about anxiety? Well, anxiety is not as simple. Anxiety is usually a fearof the indefinite, something that we cannot always explain or even locate inspace and time. It is unpredictable, and often the anticipation of an unknownor not necessarily incumbent threat.”4.
No fim de contas, uma espiralexacerbada de preocupações sobre a desadequação, o isolamento e os sonhosgrandes demais para a realidade, que acaba por se tornar subcutânea e muitasvezes indefinida.
Mas é o afundar-me em tudo isso queme leva à terceira e última parte da performance. A aceitação, a resignação, oconformismo – embora nunca total porque já o sei cíclico, porque já me seicíclica a mim, e porque já me sei sonhadora sine qua non – é esse precipícioque me adensa e me torna maior, porque é também esse precipício que me permiteas ferramentas de fuga e de escape que me dão propósito, que me fazem valer osdias em que todo o resto me falha.
Nesse aspecto, pode até dizer-se sermeta-performance: (Unbreak)able foiem si mesmo um ponto de fuga, uma ponte para a aceitação induzida, enquantosimultaneamente acaba por versar sobre esse mesmo conteúdo, na sua parte final.
Em última análise, apraz-sepertinente expor conclusivamente o texto que escrevi enquanto enquadramentoteórico de defesa académica da performance, que creio encapsular da minhaprópria perspectiva este padrão sobre o qual nos debruçamos:
(Unbreak)able
 
“Quis despir-me. Na verdade, queriapoder despir mais que o corpo. Depois das roupas queria tirar a pele. Depois dapele queria arrancar a carne. Depois da carne desfazer os ossos entre os dedose os dentes. E desse nada que restasse, ver nos meus despojos até onde sedemarca a minha diferença. Isto sou eu. Não sei o que isso quer dizer. Não seia forma certa de me olhares, não há forma certa de me olhares, não há formacerta de coisa nenhuma, era por isso que não sabia como fazer nada disto.Partiria tudo do pressuposto do que vês quando me olhas. E a verdade absolutade mim, nem eu a tenho.
Uma pessoa, por acaso numa cadeira,ou uma cadeira com uma pessoa? Isto sou eu. Há 22 anos que ansiava pela minhaprópria libertação. Descobri a arte como espectro das minhas prisões. Oalimentar e o alimento circular dos meus fantasmas. Tempos a fio procurei umgrito de fénix. Mais tarde percebi ser cíclica. Caminhar lado a lado com amorte, respirar cara a cara com o frágil, transpirar pele a pele com o vácuo, éisso que me renova, é isso que me mantém. Será um dos meus poucos vícios,injectar sal nas feridas.
Quis mostrar esse tanto mais. Para láde posto em causa o diferente e o igual, o que fica por ver. Não sabia como. Omeu corpo, por si só, grita teses demasiado alto para que o resto sobressaia.
Então, quis ir mais longe ainda: fizda nudez ferramenta, das cicatrizes néones para um olhar aberto, dasdeformidades um púlpito por onde te trago a olhar-me desde mim. E despojei ocaminho expectável do resultado artístico. Ao que em mim há de poeta, retirei apoesia. Deito-me por terra, o nu do corpo espelha apenas a erupção que há-devir. Faço da sujeição à minha própria infimidade desmascarada, despudorada deartifícios, o veículo para a minha própria libertação.
Era isso que me faltava – não erampoemas, não era a demonstração óbvia do físico per si, não era o simbolismoartístico de uma identidade fluida de género, ou o fio da navalha da morte –isso é o que já sou todos os dias. Faltava-me a crueza de me deixar aoprecipício de mim, puxar da raiz de todos os traumas e deixar que a realidadetomasse o seu curso de explosão. Por uma (e de uma) vez, sem estéticas, ser-meveículo e permitir-me a chorar todas as lágrimas. Incorro no risco do sufocantedemasiado, ciente disso como na vida, acompanhar-me-ão os que souberem ficar,do maior resto não rezará a minha história. Hoje enfrento os meus fantasmas,cultivá-los-ei alimentados da minha pele, suor, lágrimas, e tudo o mais queeste deliberado incurso no precipício proporcionar, para que jamais me deixem.É deles que voo. A minha vidaé isso – vertigem.”

Dissertação produzida como proposta de avaliação à Unidade Curricular de Sociologia das Artes do Espectáculo, da Licenciatura de Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, docente Anabela Mendes, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018.

 

O corpo inerte e o pensamento filosófico

Como a realidade da quietude forçada me leva a um mundo maior e incuba tendencialmente a filosofia e a arte em mim, por me alastrar naquilo onde consigo: o caminho mental.

 
 
 
Assim que acordo, dia-após-dia, a noção da divergência dos meus padrões de movimento face aos de mobilidade normativa está presente. É uma presença quase latente, por existir desde que eu própria existo, mas nem por isso deixa de estar lá. 
Afigura-se quase como a consciência da nossa própria respiração – ela acontece, por si mesma, automática, só se torna manual se induzirmos a autoconsciência sobre o processo. Do mesmo modo, a pronunciação da minha própria noção de padrões de movimento diferentes está cá, apenas se encontra numa espécie de ciclo automático. 
Seria assim. E é, em parte. É assim a minha autoconsciência de padrões físicos, pelo menos enquanto o meio envolvente me permite situações de conforto e não esforço, aí facilmente me esqueço de mim. 
Por exemplo, de momento, estando sentada na cadeira-de-rodas, a redigir este mesmo texto, não me lembraria que estou como estou, caso não tivesse que me despertar sobre isso para o escrever. 
 
No entanto, não obstante o hábito em relação a grande parte do que decorre no dia-a-dia, que atenua mais essa consciência, ou pelo menos a normaliza; basta-me precisar de ir buscar um copo de água ou abrir a porta, para o meu circuito de pensamento já ser completamente diferente. 
Desde logo tenho que pensar como o vou fazer. Como conduzo a cadeira, para dar espaço de abrir a porta, como transporto o copo enquanto volto para a secretária para não entornar a água. Como acordo e saio da cama e me visto e me calço, se conseguir, nem sempre consigo, e como vivo. 
Então, desde logo, uma boa parte do meu movimento está associada necessariamente a pensamento lógico, planeamento estratégico e geralmente esforço. O que faz com que sejam as situações mais inertes aquelas que me colocam menos alerta, e, por conseguinte, mais confortável e mais tendencialmente inclinada ao pensamento livre e filosófico. 
 
Contudo, estamos ainda a tocar apenas numa parte muito superficial da minha noção corporal. Regra geral, tudo isto que descrevi se processa sem que eu própria tenha que pensar muito sobre isso – ou há mecanismos e técnicas já aprendidas ao longo dos anos, que enraizei, ou, para o que não faço sozinha, felizmente na maioria dos casos ou encontro soluções ou consigo conformar-me a alternativas. 
No entanto, há particularidades acerca da paralisia cerebral, diplegia espástica, que tornam muitas vezes difícil esquecer-me do meu próprio corpo, e manter toda a noção de mim mesma latente. Principalmente a espasticidade, como o próprio nome indica. Que consiste nas permanentes sinapses cerebrais para contracção involuntária dos músculos. 
 
Isto é, na prática, a paralisia cerebral além das limitantes no que respeita ao movimento em si, torna-me também um corpo permanentemente tenso, o que faz com que me sinta mais. Sobretudo com estímulos, a grande probabilidade é que me contraia, mesmo sem querer. No meu caso específico, resulta num padrão de corpo esticado, maioria das vezes, e voz tolhida, de respiração mais curta. 
Já tenho isso como normalizado, tanto é que perco a noção que o faço e, muitas vezes, se me vir por exemplo em gravações de vídeo espontâneas, não tenho noção de determinadas posturas ou expressões. Mas, no momento em que decorrem, mesmo que as tenha enraizadas como naturais por força de hábito, a verdade é que, pela contracção, me trazem a mim e me lembram de mim. 
 
Tudo isto me leva a sentir mais conforto em dois polos opostos – ou naquilo que me foque necessariamente no meu corpo, e talvez assim extravase o overload que sinto subliminarmente todos os dias (como é o caso por exemplo de nadar, onde sinto o corpo com mais liberdade, ou do processo de ser tatuada, em que a dor me chama permanentemente a mim e me faz “habitar” o momento, escolhendo algo que me dói porque eu quero que doa, e marcando o meu corpo porque eu o quero marcado, permitindo-me assim algum domínio sobre ele). 
Ou então, o extremo contrário disso, aquilo que me permita o mais possível a alienação e o esquecimento momentâneo. Situações como escrever, ver filmes, ver peças de teatro, ouvir música, enfim, tudo aquilo que me transporte para fora de mim, funcionam como um bálsamo, porque me permitem habitar a esfera onde sou mais livre do que a do físico: a da mente. 
 
E talvez agora esteja a chegar ao cerne da questão que aqui pretendo provar. Maioritariamente, procuro formas quietas de estar, porque me permitem adensar-me mais. 
Ciclicamente, então, é nessas áreas que mais me desenvolvo. No explorar da escrita, das artes cénicas, no observar, no estudar, no descobrir e aprofundar padrões daquilo que me rodeia, na curiosidade em entender e sentir o mundo e como ele em mim se recria e reverbera. 
Não só, portanto, o desenvolvimento autodidata que faço dessas vertentes me permite ocupar o meu tempo da forma como me sinto mais eu – sem aparentes, ou pelo menos activamente notórias, limitantes – e portanto me leva a escolhas de vida que preferencialmente passem por isso, como, circularmente, por escolher repetidamente esses caminhos para o meu tempo, me aprofundo mais no conhecimento, na sensibilidade e na abertura para eles, e vou descobrindo também outros e novos temas paralelos, tornando-se um mundo cada vez maior aquele que descubro, lendo, investigando, observando e filosofando. 
 
Um factor interessante de notar aqui também, são as cumulativas vezes em que quem me conhece virtualmente e pela escrita sente dificuldade em acreditar na minha idade cronológica. Creio também prender-se a resposta a essa questão exactamente à quietude física versus a longinquidade onde chego no pensar. 
Fisicamente, a realidade é que não vivi muito, pelo menos não tanto, nem metade sequer, do que uma cabeça sonhadora como a minha gostaria de viver. Em sensação física das experiências tenho um quotidiano, digamos, pouco temperado, para quem na verdade gostaria de perder amarras. Facilmente sou tida, por isso, como insossa ou banal à primeira vista, o que a minha natureza introvertida ajuda, mais o estereótipo que já traz por si só o “elefante na sala” que é uma cadeira-de-rodas, quer eu queira, quer não. 
 
Mas, mentalmente, não é isso que acontece. Na escrita também não é isso que acontece. Quem cria o primeiro impacto desse modo, tem de mim uma representação muito mais fiel daquilo que sinto que sou. Tanto é que coleciono um considerável rol de reacções de espanto, quando me encontro com quem chegou a mim assim e me desconhecia. Tenho na escrita o ponto de fuga. Tenho na escrita, e no pensar artístico, criativo e filosófico que lhe está associado, a minha forma de ser do tamanho que realmente sou e ainda me suplantar. 
Tenho na escrita, e na quietude dela, e em quase todas as janelas mentais que abro a descobrir mais mundo, que acabam por nela desaguar, o meu modo de chegar mais longe. O forçar-me ao corpo destitui-me desse meu propósito. É no despojar-me dele que indubitavelmente me sinto mais, e que produzo aquilo a que quem me conhece chama carinhosamente de “espasmos poéticos”, que realmente sinto irem ao encontro da minha essência e que a elevam. 
 
Creio que se fosse livre em corpo como sou em espírito, talvez não tivesse todo este mundo dentro, pelo menos não ainda. A idade não me corresponde. O tempo mental de quem se “auto-navega” é rápido demais para os relógios. Não será também ao acaso que quem me lê me chama até de “old soul”. O tempo da descoberta não espera pelos ponteiros. 
Mas acredito que se pudesse não ser presa pelas minhas limitantes – e especialmente já tendo estado deste lado e tendo noção do que perco – muita coisa não seria como é. 
Não seria assim, porque teria (e tenho, com teimosia continuo a ter) uma imensa vontade de viver o que não posso, de chegar onde não chego, de ir onde não vou, e sobretudo intensamente, e sobretudo longe, e sobretudo de modo tão frenético e assoberbado, que não me restaria tempo para pensar, nem para me adensar, nem para saber quem era, só para me sentir de uma vez e apenas – só para compensar tudo aquilo que me falta – só para o reverso da medalha, perdendo os limites de vista. 
E aí, não acredito que filosofasse, que me preocupasse em ler e investigar, que quisesse perder tempo quieta a escrever, se podia dançar de pé, se podia ser dona de todos os meus passos, se podia permanecer no fio da navalha e dar-me ao luxo de escolher brincar com a sobrevivência. 
 
Seria hipocrisia minha, se não admitisse que são muitos os dias em que trocava uma coisa por outra, caso tivesse escolha. Mas na realidade não sei até que ponto me sentiria completa. Não sei até que ponto sentiria propósito. Não quando tanto do que sou se assenta no que escrevo. E aí, chego até a agradecer, pela quietude que me é forçada, porque a afirmação mais franca que posso fazer é que não sei quem seria se não filosofasse, se não habitasse os mares que construo dentro, se não fizesse tudo o que aqui descrevi, que me abandona do eu físico para me espraiar onde ele é livre, e que tem no seu pináculo sempre a escrita. 
 
Concluo que as limitações que tenho enquanto corpo móvel, hábil, funcional, não só me tornam quem sou por não me deixarem outra escolha, como por me fazerem aguçar ao máximo todos os outros potenciais que não lhes estejam inerentes, numa espécie de acto de plasticidade cerebral aplicada à própria construção do self, em que faço uso do espaço que seria do corpo, para me aumentar no que me resta. 
Aliás, a própria experiência de redacção deste trabalho acaba por ser reflexo de tudo aquilo que tento defender: na inércia física em que redigi tudo isto, tacteei-me e percorri em mim distâncias enormes, potenciei um expoente maior da minha auto-descoberta e permiti que acontecesse aquilo que é por definição o meu meio de me expandir. 
 
Conclui-se circularmente, por tudo o que acabo de escrever, processo que é em si espelho do que ilustro, o que creio ser o ponto final ideal da minha reflexão livre, a metafísica do título: o corpo inerte no pensamento filosófico.

 

Dissertação produzida como proposta de avaliação à Unidade Curricular de Teoria e Estética do Teatro, da Licenciatura de Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, docente Anabela Mendes, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018.

O subtexto corporal e a empatia na arte | Reflexão artística

 
 
Paula Sá em Os Homens da Minha Vida, 2014. Fotografia: Ricardo Rodrigues
A expressividade física, enquanto linguagem corporal e facial, é uma valência aplicada a todos os seres vivos. Primeiramente enquanto mecanismo necessário à sobrevivência, mas também como parte chave de padrões comportamentais e sociológicos. De certo modo, podemos dizer que até as plantas exercem expressividade física, na medida em que são seres vivos que reagem a estímulos como o de luz/sombra, por exemplo, contorcendo os "corpos" de modo a favorecer as questões mais adequadas à sua sobrevivência.
Se aplicarmos esta questão à dimensão artística, ao tomarmos os primórdios da arte na civilização humana em consideração, podemos observar a multiplicidade da utilização do corpo enquanto "veículo" e, simultaneamente, modificador activo do resultado da obra artística, nos mais diversos contextos. Desde o surgimento da música, à dança e ao teatro, como vemos n' O Nascimento da Tragédia de Nietzsche, que o corpo tem um papel fundamental na arte. Se formos mais além, e em contexto contemporâneo de performance, é até tido como matéria.
Mas tomemos, por uma questão de não dispersão do raciocínio, agora um caso específico para análise, através do qual possa ilustrar as relações emocionais incitadas pela expressão física do artista, na minha posição de espectador.
Escolho para isso uma situação talvez menos exacerbada, mas ainda assim não menos intensa e comprovativa. Tomo como exemplo prático o espectáculo Os Homens da Minha Vida, um concerto de registo intimista onde a cantora Paula Sá revisita a sua vida através de música cantada ao piano.
Talvez pareça pouco óbvio o meu percurso mental da questão, mas é isso mesmo que proponho: dissecar as emoções no processo simbiótico artista-espectador e qual o papel da linguagem corporal no processo.
Assisti à gravação em vídeo do espectáculo múltiplas vezes ao longo do último ano. A parte vocal é obviamente a de maior destaque, mas está longe de ser a única. Há na linguagem corporal da artista um subtexto, arriscar-me-ia a dizer tão forte como a expressão vocal. A voz promove empatia, pela execução exímia e o convite de difícil recusa ao foco no presente por parte do espectador. Mas é a utilização do corpo que adensa essa ligação da artista com quem a vê, ainda mais longe.
Do mesmo modo que os exemplos enunciados [na pergunta, sobre a expressão corporal de Kathakali], são as mãos e o olhar que mais prendem também. Ilustra o canto com o gesticular. E tem a emoção do que canta à tona da voz e dos olhos. Escrevi uma vez que parece trazer nos dedos gaivotas envidraçadas.
Conecta-se a mim num contexto cinematográfico, pela expressão facial fortíssima, a fragilidade e a comoção denotadas no rosto enquanto canta, e as mãos trémulas a ondular as notas vocais, tornando-se quase dança. Impele-me à poesia por indução empática.
Talvez seja esse o expoente máximo da dimensão desse efeito das emoções em quem as observa: tomar de tal maneira conta do espectador que ele mesmo se inunda da mensagem do artista. E da maneira como anda, como se senta, como coreografa de forma instintiva a dança de ser e estar, enquanto se descreve e canta, surgem degraus através dos quais chego a ela, me comovo e quase a bebo liquefeita e escrevo inúmeros versos sobre a sua corporalidade.
Uma das melhores partes da arte, julgo, está aí mesmo, no nós espectadores esquecermos a nossa pele e nos deixarmos invadir por todos os subtextos do artista.
É interessante também referir que, das diversas vezes que assisti, os meus diferentes estados-espírito me fizeram sentir maior ligação com diferentes partes do espectáculo. De grosso modo, as que fossem mais de encontro ao que eu mesma sentia.
É uma particularidade interessante do processo empático, o facto de como, por exemplo estando tristes, uma música triste nos pode surgir como bálsamo. Diversas vezes o choro dela chegou a aliviar o meu, passei a procurar esse espectáculo como abrigo.
 
(Texto produzido como resposta à avaliação escrita da unidade curricular Sociologia das Artes do Espectáculo, da Licenciatura em Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, proposto pela Professora Anabela Miguens Mendes, a 23 de Março de 2018, visando a expressão física das emoções nos processos artísticos e a empatia do espectador)