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INÊS MARTO

INÊS MARTO

LIVROS À VENDA:

Simão/Symone: "Gosto de cantar a solidão, ela gosta de mim, somos um par perfeito"

Fotografia: Miguel Prata

Simão Telles é também Symone de Lá Dragma. Já foi concorrente do programa The Voice, RTP.  Cantor. Intérprete. Transformista. Sonhador assumido. E, acima de tudo, uma força na luta pela igualdade. Nesta entrevista, abre-nos as portas ao seu mundo.

 

Inês Marto: Simão, comecemos por contar quem és.
Simão Telles: Olá querida Inês, olá a todos queridos leitores, o meu nome é Simão Telles, tenho 21 anos nasci no dia 27/06/1997 sou caranguejo, apaixonado, sensível amante de quem me é coração, das artes, dos poetas e de Portugal.

 

A tua profundidade é rara. Sentes que vens de outro tempo? Fala-me do teu mundo.
Sabes, há dias que penso que venho de outro tempo, de já há muitos anos atrás. E tenho dias que penso que venho do amanhã, do futuro, que estou a milhas de luz dos outros seres humanos. Para não me baralhar, e não baralhar os outros, prefiro dizer que nasci onde nasci, onde tinha de nascer, com a vontade de relembrar o passado para no futuro não ser esquecido.
O meu Mundo está e foi construído pelas feridas que a sociedade me foi impondo ao longo dos anos. As palavras machucam e doem, muitas vezes doem mais que um simples estalo. O meu mundo é a minha defesa, comecei por construí-lo no Cabaret (Bob Fosse / Liza Minnelli) aos 7/8 anos de idade e hoje acabo, já mais maduro, nas referências mais poéticas portuguesas.

 

A tua formação é de actor. Um dos teus sonhos é o Sunset Boulevard. Tens paixões inúmeras (Simone de Oliveira, Judy Garland, Dalida, etc). Há um padrão sobre o tipo de mulheres que te fascinam?
Sim, há. A mulher fatal. A mulher história, solidão, com força, garra, destruída mas amada.
A referência feminina, ao longo dos anos em que fui crescendo, deu-me gozo de ver. Quando falo em gozo, falo em prazer, falo em fascínio, o corpo da mulher é belo, o gesto singular da mulher é belo.
E depois lá está, cada referência tem o seu ponto de partida, a sua característica, mas todas elas, essas figuras que me atraem, têm algo em comum, todas fizeram a solidão a tristeza e a dor, arte!
O momento da minha vida em que eu acho que me apaixonei pela mulher foi quando ouvi o Somewhere Over the Rainbow, da Judy Garland, de um concerto que ela fez no fim de carreira, no Carnegie Hall. Foi aí que senti que aquilo era mais que uma canção, era mais que uma dor ou uma letra, era a arte. E acima de tudo era um pedido de ajuda, tão certo mas tão mal entendido.

 

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Existem fronteiras claras entre o Simão e a Symone, ou é outro lado de ti? Como é que surgiu?
Penso que quando me fazem este tipo de pergunta que estão à espera de uma resposta oposta aquilo que costumo dizer. Mas não, somos iguais, um usa peruca, outro usa o cabelo à “Vera Lagoa”, é a única coisa que nos diferencia.
Sim, a Symone é a minha plataforma, é a minha voz, nunca em Simão eu faria metade do que a Symone faz, sou uma pessoa muito calma, pacata, tímida, medrosa. Se parecer ou vos der a dar entender o contrário isso é apenas a carapaça, chama-se protecção pessoal. Os meus amigos estão escolhidos a dedo, nos dez dedos da minha mão ainda ficam alguns livres, sou peculiar, e exigente para com quem me rodeia, gosto de pessoas.
Gosto de um abraço, de um beijo apertado! Não sou do snobismo do aperto de mão, não sou rainha, sou pessoa.
Se pudesse, seria mais Symone, infelizmente não me deixam.

 

 

A tua presença tem um poder extraordinário de disrupção. Quer sobre a homofobia, quer sobre o binarismo de género, quer sobre a ditadura da imagem. És uma inspiração e um exemplo para a sociedade. E a ti, quem te inspira e te dá forças?
Desde já, obrigado pelo rasgado elogio. Fico lisonjeado quando fico a saber que tenho pessoas que admiram o meu trabalho e que entendem tão bem a minha mensagem. Fico feliz em saber que alguma coisa eu já fiz. Mesmo tentando, vou conseguindo.
Tudo me inspira sabes, as pessoas inspiram-me, a vizinha do lado inspira-me, e não necessita de ter uma história pós-dramática em morte. Basta ela fumar e já ser “antiga” que isso me inspira. O riso e o choro das pessoas inspiram-me.
Os poetas, aí esses loucos libertinos, o Ary, a Natália, o Eugénio de Andrade ... os músicos, a Simone ... a minha e de todos, Simone (que até hoje penso que foi quem me deu ao mundo do espectáculo, o conhecer de coisas tão belas como é a música ligeira portuguesa, o cheiro da vida, e a amargura de viver).

 

Também tens um lado negro, que te dá outra densidade. Por um lado é destrutivo, por outro é uma mina enquanto arte. Queres falar sobre essa dualidade?
Tudo o que canto é “gritado”, chorado, interpretado, é dor! Eu canto para pedir ajuda, o meu lado negro são as minhas dores, os meus pesares, as minhas amarguras, que ao cantar as espanto, mas que quando me deito na cama, voltam, pois sem essa escuridão tão poética, eu, Simão ou Symone, nunca iria conseguir viver bem, nunca seria o artista que gosto de ser. Eu gosto de cantar a solidão, ela gosta de mim, somos um par perfeito. Que hei-de eu fazer?

 

Neste momento quais são os teus maiores objectivos? Há projectos novos em mãos?
Neste momento, estou a passar por uma fase da minha vida em que quero tratar da minha saúde e de mim, vou submeter-me a uma cirurgia. Como não tenho trabalho na área do espectáculo vou propôr-me a esta nova fase da minha vida, para mudar de hábitos e tentar ficar ou ser uma pessoa melhor e mais saudável.
Agora um maior objectivo? Sunset Boulevard, é um grande sonho meu poder interpretar o papel de Norma Desmond, na versão musical adaptada por Andrew Lloyd Webber. Tudo é perfeito - roteiro, letras, cenários, figurinos. (Uma curiosidade - Norma Desmond foi o papel de sonho da Simone De Oliveira, que ela nunca teve oportunidade de interpretar.).

Imagina que tinhas oportunidade de ser ouvido pelo mundo inteiro. Que mensagem gostavas de deixar?
Amar. Amor. Amar e amar e mais amar.
Era o que eu gostava que todos nós fizéssemos, amar o próximo, dizer não ao ódio, regularizar e manter a paz serena.
Mais uma vez amar, compreender. Nada é fácil, mas também só se torna impossível se assim o quisermos. Eu estou aqui. Nunca pensei estar. Quero mais? Quero! Vivo para isso, tento viver. Desistir? NUNCA!

 

Obrigado Inês pela maravilhosa e confortável amigável entrevista.
Tudo de bom para ti e para o teu futuro.
Muita sorte para as vendas do teu novo livro, que eu espero que seja, e será, um grande sucesso! ❤️
Do teu queridx Simão/Symone ❤️

 

Entrevista: Inês Marto
Fotografias: Pedro Magalhães e Miguel Prata

"Está na hora de ver para além do óbvio" | André Mendonça

 
Inês Marto: André, tens 21 anos, e, no mínimo, um rol muito peculiar de características. Se tivesses que te resumir numa frase, para quem não te conhece, como te apresentavas?
 
André Mendonça: "Sou tudo, sem querer ser nada." Todas as experiências em que o destino me colocou não dependeram de mim para aprovar ou reprovar, simplesmente estava escrito assim. Ter deficiência - paralisia cerebral, sentir atração por pessoas do mesmo sexo, ser poliamoroso, ter uma identidade de género diferente da norma padrão, são todas questões que sempre fizeram parte de mim e fui descobrindo no último ano.
 
 
IM: Um dos teus sonhos é a cozinha. Queres falar um pouco sobre isso?
 
AM: Esse sonho começou quando ainda vivia na Ilha da Madeira de onde sou natural. Desde pequeno que dentro de mim se manifesta o “bichinho culinário”, observar os outros a fazer e ter vontade de pôr as mãos na massa. As primeiras tentativas não foram as melhores, mas com o tempo fui aperfeiçoando.  A vida forçou-me a crescer mais cedo do que o esperado, tive que aprender sozinho a desenrascar-me, porque os meus progenitores  trabalhavam a tempo inteiro. O gosto foi crescendo e a vontade de experimentar novas coisas também, fazendo adaptações e mudanças às receitas originais. Tenho mais  gosto pela parte da pastelaria, desde a infância, e com o passar dos anos esse bichinho foi crescendo, e tornou-se em algo que gosto mesmo imenso de fazer e que me dá prazer. Dada a condição de saúde que tenho, cozinhar por si só é um enorme desafio… Tenho recebido constantemente elogios das pessoas que me são próximas, e incentivos de que deveria obter formação certificada, dando continuidade a este gosto e talento que tenho, mas trata-se de algo que não é contemplado pelo sistema educacional Português para quem tenha uma deficiência mais complexa do que simplesmente a perda de visão, audição, ou falta de membros. Isto fecha injustamente muitas portas.  Somos válidos para fazer projectos e termos uma carreira activa.  Tal como disse a masterchef  Eva Silva, no apelo que fez no PortoCanal na sua rubrica de culinária quanto ao querer frequentar um curso de pastelaria: "O André tem mais vontade e gosto do que aqueles que estão lá por obrigação!”
 
 
IM: Além da cozinha, também te interessas pelo foro artístico, correcto? Como foi até agora a experiência, e quais os teus sonhos nesse campo?
 
A paixão pelas artes já vem desde há muitos anos. Frequentei aulas de danças de salão, de guitarra e canto. Quando cheguei ao 9º ano, ao fazer os testes psicotécnicos, estes indicavam que eu deveria seguir uma carreira  artístico-musical. Eu bem queria entrar para o ramo artístico, porém sabia que essa hipótese não poderia ser considerada válida para os meus progenitores.  Fui para um curso Tecnológico de Informática, no qual  não me identificava de todo, e quando, no 11º ano, comecei a frequentar o grupo de teatro da minha escola secundária, percebi que tinha cometido um erro. Fui parar ao grupo de teatro por recomendação da psicóloga da escola. Aquele tempo da semana constituía as únicas duas horas que me faziam sentir bem comigo mesmo, onde podia ser quem eu quisesse sem medos, e revelou-se ser uma grande paixão minha. Foi o que me salvou da depressão que tive nesse ano.  Permitiu-me crescer um pouco enquanto pessoa, aprender mais sobre a vida, como lidar com os desafios que nela surgem, principalmente os problemas e frustrações.
Quando vim para Lisboa em 2014, após ter abandonado o curso de Informática devido à intensa homofobia a que estava sujeito na escola e em casa, decidi mudar o rumo a minha vida e queria seguir teatro, fiz um audição na ACT e na NBA (Nicolau Breyner Academia), tendo sido aceite nesta última no curso de actores. Fiz algumas figurações em televisão e pouco mais. Apenas estive três meses no curso da NBA, mas passei bons momentos. Na altura desisti do curso pois apercebi-me que não estava na melhor fase da minha vida para me dedicar a algo que exigia tanto de mim, tanto a nível físico como psicológico.
Os meus sonhos neste campo são conseguir mostrar ao mundo das artes que é possível ser-se ator mesmo com os desafios que a CP nos coloca. Não cair no estereotipo  de ser obrigatório ter mil e uma capacidades ou não se tem valor. Já é mais do que tempo de haver visibilidade e demonstrar a importância de nós, pessoas com deficiência, sermos capazes, cada um à sua medida e de merecemos oportunidades do mesmo calibre, tal como qualquer outro humano. Gostava de fazer um musical com temas LGBTQ+, não deixando de parte a questão da deficiência nesse mesmo panorama. Na minha humilde opinião considero que há espaço para as pessoas LGBTQ+ e pessoas com deficiência no mundo das artes, deixemo-nos de normatizar. Estamos em 2017. Há que mudar!!!
 
 




IM: Também pertences ao mundo LGBTQ+. Como lidas com pertencer a duas minorias desta maneira?
 
AM: É duro. Saber desde pequeno que sei que sou diferente, sem saber o porquê, o que está mal…. porque nunca ninguém foi capaz de sentar-se ao meu lado, explicar-me o que aconteceu, responder às minhas inquietações e questões… não é tarefa para qualquer um.  Todos à minha volta desviavam a conversa, inventavam justificações, nunca mencionaram que eu sofria de uma deficiência [Paralisia Cerebral] e que isto iria ter repercussões depois da infância/adolescência a vários níveis, como tenho vindo a verificar.  Os meus progenitores nunca foram capazes de encarar que tinham um filho com deficiência, aceitar esse facto e terem a consciência que eu precisava de ser tratado e informar os restantes familiares do que realmente se passava. Ao invés disso, inventavam histórias e mentiras para encobrir as minhas falhas e defeitos… Não é fácil levar com um balde de água fria aos 21 anos, e começar a encaixar as peças todas do puzzle e perceber-se que é mais  complexo do que à primeira vista, custa, de um momento para outro apercebermo-nos que não somos capazes de fazer aquilo que sempre pensávamos que éramos. Ora pertencer-se ao mundo LGBTQ+, é por si só já um desafio, mas pretender a duas minorias "rebenta a escala". De dia para dia, tento ir digerindo devagar esta nova etapa e viragem que a minha vida está a sofrer. 
 
 
 
IM: No teu dia-a-dia, quais são os maiores desafios, e como é que os tens encarado?
 
 


AM: Acho que o maior desafio de alguém com deficiência é a forma como os outros e mundo nos percepcionam. Não há nada de errado connosco, cada um é como é, e todos temos capacidades e virtudes, ao nosso jeito, à nossa maneira. Mas esse peso psicológico que carregamos por imposição do outro, é bem grande. Muitos consideram que, ao começar a afirmar-me, que deixei de ser eu, de ter as minhas qualidades, os meus valores, os meus ideais, os meus interesses. Por vezes chego a pensar seriamente que devo ter algum “problema” pois vejo os rapazes a olharem para mim, julgarem-me e quererem-me só pela minha aparência física e pela minha alta líbido, sim as pessoas com deficiência caso não saibam também são seres sexuais.  Já me senti usado mais do que uma vez… alguns já se aproximaram de mim aparentemente com boas intenções e no fim descobri que fui só um meio para obter um fim. Outros pensam que se podem aproveitar de mim como se eu fosse um brinquedo sexual à sua disposição que está ali, de graça, em vez de estar exposto numa vitrine de uma sex shop com uma etiqueta de preço. Em oposição, olham maioritariamente para o meu companheiro pela pessoa que ele é, pelos interesses, pelo intelecto, pelos hobbies, gostos (musicais, literários, etc…). Sem corpo não há pessoa e sem pessoa não há corpo, torna-se um invólucro vazio. Sexo não é tudo na vida. Quero ter amizade, companheirismo, partilha de experiências e perspectivas de vida, evoluir, crescer em pessoa e em ser.

 
 
IM: Assumes-te como poliamoroso. O que pensas sobre a forma como a sociedade vê o poliamor?
 
AM: A sociedade ainda olha com maus olhos, é ainda muito mal visto e não entendido.  A definição mais lata de poliamor diz que é “a existência de um relacionamento em que pode existir a possibilidade de outros relacionamentos afectivos e/ou sexuais com o consentimento de toda a gente.”. É complicado encontrar alguém que veja o mundo assim. É difícil a outra pessoa não se sentir mal, não se sentir como “o outro” ou sentir que não recebe tanta atenção…  Muitas acham que quem é poliamoroso é alien, ter relação poliamorosa é estranho, que quem o é não gosta verdadeiramente da pessoa que está ao seu lado…
 
 
IM: E quanto à tua identidade de género, apresentas-te como trans. Queres falar um pouco sobre essa definição?
 
 
AM: Identifico-me como transgénero, não binário, genderfluid  e andrógino. Havia ali algo me deixava inquieto, desde sempre, e via-me obrigado a reprimir o meu verdadeiro “Eu”, para me encaixar nos cânones e estereótipos da sociedade. Eu desde cedo que sentia um lado mais feminino em mim (querer pintar o cabelo, unhas, usar maquilhagem, usar saias, vestidos, sapatos de salto alto, entre outras peças de vestuário e acessórios como brincos, colares, anéis). Em termos de expressão de género trata-se algo ambíguo, pois não tenho uma aparência somente-feminina nem somente-masculina mas sim algo no meio do espectro com fluidez. Sinto um duelo dentro de mim, um mix de masculino e feminino. Depende muito dos dias, do meu estado de espirito, e é algo com que eu ainda hoje  não sei lidar bem na totalidade.
Gostava de ter um físico e uma aparência que me fizesse passar mais despercebido na rua, pois as pessoas notam logo que tenho barba e pêlos no tronco, pernas e braços e percebem logo que “sou um rapaz vestido como uma rapariga”, acabando por sofrer imenso com isso, seria preferível que as pessoas ficassem confusas ou baralhadas e interpretassem como não sendo nem rapaz nem rapariga. Chego a aperceber-me disso mesmo nas pessoas que conheço, elas ficam apreensivas sobre aquilo que eu estou a querer transmitir no dia-a-dia. Já tive comentários de amigos que dizem sentirem-se estranhos ao meu lado quando estou a usar saia, vestido, sapatos de salto alto ou maquilhagem. 

 
IM: Tens um dos diagnósticos mais raros de paralisia cerebral que conheço. Como lidas com os estigmas à volta disso?
 
AM: Ao longo do Verão de 2016, fui notando um ligeiro agravamento do meu estado de saúde… comecei a revelar mais dificuldades em ouvir (eu frequentemente falava alto para combater isso e nem me apercebia), a capacidade respiratória, assim como a capacidade de processar informação e a resistência ao esforço físico, todas diminuíram. Tornou-se necessário começar a fazer check-ups nas várias especialidades para perceber o que se poderia estar a passar. A primeira paragem foi na audiologista que, após efetuado o rastreio gratuito, verificou que eu sofria de perda auditiva moderada em ambos os ouvidos, e que seria importante eu começar a usar aparelhos auditivos para prevenir o agravamento da perda.
Nas semanas que se seguiram fui continuando a ter consultas atrás de consultas, de todos os campos: oftalmologia, pneumologia, imuno-alergologia, neurologia, fisiatria, neuro-psicologia, psicologia, terapia da fala, estomatologia/medicina dentária ATM (articulação temporo-mandibular), entre outros. Em cada especialidade, encontrámos explicações para inúmeros sintomas, comportamentos corporais e atitudes que eu tinha, muitas das quais, involuntariamente. Tudo começou a encaixar-se no puzzle e o panorama não era nada animador.
 
Para pessoas que sofrem de paralisia cerebral, é normal passar por uma fase de envelhecimento prematuro, entre os 20 e os 40 (face à infância em que os sintomas permanecem relativamente controlados e monitorizáveis) mas infelizmente ainda não existem estudos suficientes focados na fase adulta, para se poderem fazer muitas afirmações e terem certezas ou previsões para dar.
 
Este, foi um enorme desafio, pois, por incrível que pareça, só à quarta tentativa é que consegui um diagnostico que correspondia aos meus sintomas, apesar de estar classificado como “paralisia cerebral espástica - diplegia assimétrica”, acaba na verdade por ser uma “paralisia mista - triplegia” (o membro superior direito e ambos os membros inferiores afectados), por ter também fenómenos de distonia, rigidez, ataxia. 
Não lido nada bem com isto, pois da minha experiência, para ser reconhecida a deficiência por parte da sociedade em geral, temos de estar obrigatoriamente numa cadeira de rodas, ser cegos ou surdos, tudo aspectos notoriamente visíveis. Já me aconteceu em diversas ocasiões, tanto em reuniões para cursos, consultas médicas, pessoas ao meu redor dizerem e porem em causa aquilo que eu transmitia: “Ah mas não parece que tens algo!”, “Pensava do que tinha dito ao telefone/mail que se encontrava numa cadeira de rodas”, “Tu falas e andas”, “Estás a exagerar, são coisas da tua cabeça”, “Você está óptimo, pare de armar-se em coitado!”…
Eu desafio-me imenso, e ainda me acho capaz de fazer tudo… e é duro saber que isto é mais complicado do que o esperado, e que irei ter de depender de alguém para o resto da minha vida.
 
 
 
IM: O que pensas que podia ser feito para mudar a tua vida para melhor (quer quanto à condição física, quer nas questões LGBTQ+)?
 
AM: É necessário, nas questões LGBTQ+, dar visibilidade acima de tudo. Principalmente às pessoas T (Trans) nos diversos contextos, mostrar que todos merecem ser respeitados independentemente das suas crenças, identidade de género, orientação sexual, deficiência  entre outros. 
Devemos unir-nos estar coesos, mudar a forma como o mundo nos olha, pouco a pouco, porque tenho a certeza se isso mudar… no dia seguinte sou outra pessoa. 
Antes de dizerem "não digas que não és capaz" pensar porque é que digo que não sou capaz, pensar no peso que a sociedade tem sobre nós, pensar que pela quantidade de nãos e portas fechadas que já tivemos, é difícil em alguns dias ver a luz no fundo do túnel, ter a esperança e a confiança de que algo se há de conseguir. Lá por ter um mero “defeito de fabrico”, chamemos-lhe assim,  não quer dizer que não haja um caminho que me permita fazer alguma actividade profissional de alguma forma. Acho que o melhor seria o outro tornar-se mais atento, inclusivo, aberto a ouvir-nos até ao fim sem pré julgamentos precipitados. 
 
 
IM: Se tivesses tempo de antena em que todo o mundo te pudesse ouvir, que mensagem gostarias de deixar?
 
AM: Está na hora… na hora de ver para além do óbvio. Eu faço parte daquilo a que se designa “padrão”. Compaixão, não obrigado… Eu sinto me capaz de fazer coisas ao meu jeito, ao meu ritmo, à minha maneira , amo cozinhar e fazer doces, queria vender e sentir-me útil, já que todos dizem que é bom e que deveria fazer dinheiro com isso. Mas do que serve receber tantos elogios, se não se valoriza de verdade o mérito de quem merece.
Acredito que nada é impossível, somos resilientes, e com uma personalidade forte. Eu tento, tento e tento… não me consigo conformar. Eu não sou a apenas a CP, ela é só uma pequena parte de mim. Eu sou um mundo de coisas para além disso… Vamos remover complexos, desmistificar preconceitos, e educar esta sociedade. 
Quando chegar o nosso dia, o sabor da vitória vai saber tão melhor, podem ter a certeza que chegará, porque não aceitamos o não! #unidos
 
Eu sou o lado direito do cérebro . Porquê o direito? Pergunta-se… foi aquele que permaneceu intacto e desenvolveu-se…
Sou criatividade. Um espírito livre. Eu sou paixão. Sensualidade. Eu sou o som das gargalhadas. A sensação de areia debaixo dos pés descalços. Sou movimento. Cores vivas. Eu sou o desejo de pintar numa tela vazia. Sou imaginação sem limites. Arte. Poesia. Eu sinto. Eu sou tudo o que eu queria ser.

Agradeço imenso à Inês Marto pelo nosso encontro de almas. Acredito que iremos voar longe! Até à próxima.

André Mendonça | Entrevista a Inês Marto

 

1. Inês, em primeirolugar foi uma surpresa imensa ver um artigo de alguém com deficiência num sitede notícias LGBT português e com tanto em comum comigo.  De que forma encaras o mundo lá fora? Como teencaras pertencendo a três minorias: ter deficiência, ser LGBT+, e serpoliamorosa?
 
O mundo “lá fora” é… uma dicotomia muito grande. Por um ladohá imensos esforços para a mudança de mentalidades a acontecer, o activismo écada vez mais. Por outro lado, a emergência de novos grupos “anti” também meassusta. Têm crescido grupos com um ódio desmesurado a pessoas, por estaremsimplesmente a ser pessoas, de forma completamente absurda e isso épreocupante. Precisamos de mais união e menos mesquinhice urgentemente, paracombater isso.Quanto à forma como me encaro a mim mesma, acho que énatural. Nunca fui outra pessoa, não saberia o que é não ser eu, tentei lidarcom as minhas realidades à medida que elas se revelaram, como tentamos todos, epenso que não me tenho saído mal… (risos)
 
 
2. Depois do teuartigo publicado em Julho no Dezenove.pt, qual o feedback que recebeste? O teuartigo é o único publicado até hoje no dezanove acerca de LGBT+ comdeficiência, como encaras esse facto? Há ou não muito ainda por fazer?
 
Há muito ainda por fazer, sim, claro que sim. Começando pelodespudoramento sobre os nossos corpos, sobre os nossos padrões físicos, sobre anossa condição humana. E digo isto muitas vezes também em relação a nós mesmos.Há ainda muito por fazer em termos de auto-exploração, de nos descobrirmos paranos sabermos também retratar, para conseguirmos depois mudar os paradigmas queinfelizmente existem. Acho que trazemos, além das batalhas físicas, um trabalholatente de auto-melhoramento connosco, para nos conseguirmos expandir a pontode nos podermos expor, para tentar estas mudanças. É preciso coragem, mas podeser que consigamos abrir caminhos.
 
 
3.  Quais foram as situações mais complicadas quetiveste durante a tua infância e adolescência tendo deficiência? Tiveste deamadurecer e encarar a vida de outro modo, comparativamente a alguém semdeficiência na tua faixa etária?
 
Essencialmente o bullying e as repercussões que teve em mim,em termos de autoestima e confiança. Isso foi a parte mais complicada. Além dasdores físicas e das frustrações, claro. E o facto de ter que encarar que secalhar a minha realidade não ia ser das mais genéricas. Mas depois aprendi a irvendo essa parte como uma vantagem, às vezes até uma arma, levei o meu tempo.Tem a ver precisamente com isso, com esse amadurecimento. Mas não tenho acerteza se amadureci por causa das condições físicas, na realidade. Promovemoutra forma de olhar a vida, claro. Mas sempre me senti uma alma velha, até emquestões que não tinham nada a ver com isso. Já era naturalmente desadequada àminha faixa etária. Isso talvez tenha impulsionado mais, mas penso que fazparte da minha essência. E acho que ainda bem.
 
 
 
4. Qual são os  teus maiores desafios na vida diária?
 
Sem querer ser demasiado lírica, acho que o meu maiordesafio diário sou mesmo eu, enquanto pessoa, e a minha necessidade de reinvençãoconstante, muitas vezes pode ser desgastante, isto de “brincar” com as minhaspróprias linhas como (esperamos) meio de vida, mas, além de ser compensador, émesmo uma necessidade. E depois, tirando isso, são as minhas ansiedades, osmeus pânicos, o não saber se o meu corpo hoje vai resultar, se ficar sozinha sevou conseguir desenrascar-me… apetecer-me apanhar um avião para o Tibete e nãopoder… (risos) é… não poder viver às três pancadas, despreocupadamente…gostava, pelo menos de experimentar um dia, sair do survival mode um bocadinho e respirar.
 
 
5. Achas que existeuma total falta de visibilidade das pessoas com deficiência em Portugal? Epessoas com deficiência LGBT+?
 
Das pessoas com deficiência não diria, já existe gente adesbastar caminhos, felizmente. A Mafalda Ribeiro, por exemplo, o SalvadorMendes, o Paulo Azevedo, a Diana Bastos e o trabalho que se tem feito nacompanhia Vo’arte, acho que pode mudar muita coisa. Agora em relação a pessoascom deficiência LGBT+, a história é outra… e infelizmente mais funda do queisso, começa logo no reconhecimento de pessoas com deficiência enquantoindivíduos com dimensão sexual existente. Felizmente há páginas como o Sim, nósfodemos que têm feito esforços para mudar isso. Mas, nesse contexto (aindamuito pequeno para o que devia) ainda é tudo muito heteronormativo. Esperoconseguir mudar alguma coisa nisso.
 
 
6. O que achas quepoderíamos fazer em conjunto para mudar esse paradigma da visibilidade ?
 
Unirmo-nos. Eu sei que regra geral não é bom sermosestereotipados todos como estando no mesmo saco, mas neste caso particulardesta minoria dentro da minoria, acho que é urgente unirmo-nos, paraconseguirmos alguma evolução da sociedade. Deixarmos de ser exemplos tãopontuais. Termos uma “pegada” concreta. Acho que a nossa surpresa em nos termosencontrado um ao outro fala por si sobre o quanto isto é necessário.
 
 
 
7. Na tua opinião,como lida a sociedade com uma pessoa com deficiência?  Tendo fluidez de género, e ainda sendoLGBT+,  isso traz mais pressões para aforma como os outros nos vêem?
 
Não sei bem se lida com medo, se com desconhecimento. Queroacreditar que grande parte das vezes o desconforto das pessoas é genuinamentepor não saberem como reagir. E isso só se combate com a visibilidade de queestávamos a falar, até que caiamos em lugar-comum. Sendo gender-fluid e tendo asexualidade que tenho… talvez provoque estranheza, sim. Nunca senti que se “acumulassem”,digamos assim, uma à outra, essas pressões. Mas talvez provoque estranheza porse calhar nem passar pela cabeça das pessoas a hipótese, lá está, por falta derepresentação.
 
 
8.  Qual é o teu maior sonho?
 
Paz de espírito! (risos)… não sei, podia dizer felicidade,mas não vejo isso enquanto meta. Gostava muito de sentir sempre que tenho umpropósito na vida. De poder sempre dar de mim à arte, de ser uma pessoa maisdestemida, um bocadinho mais leve (não totalmente, não gosto muito de medescomplicar a 100%, perco a “veia”), gostava de me sentir livre, em todos osaspectos. E de um dia olhar para trás e ver que consegui tornar-me na pessoaque vim ao mundo para ser.
 
 
9. Se pudesses mudaralguma coisa em relação à forma como o mundo olha para as pessoas comdeficiência, o que seria e porquê?
 
Mudava a forma como as pessoas se olham umas às outras, noseu todo. Ou melhor, tentava que se passassem a olhar, mais, acho que é issoque falta. Não está na forma de olhar, o problema, está é no acto sequer de nosolharmos, que existe tão pouco, se isso passar a acontecer, com verdade, oresto virá por acréscimo.
 
 
10. Na tua opinião oque é que poderia tornar a vida de uma pessoa com deficiência, melhor?
 
Dependerá muito, caso a caso. Mas muito disto que dissedaria para esta resposta, de alguma forma. Termos um mundo que nos considereexistentes e se adeqúe. Olharmo-nos, e olharem-nos, com verdade.Auto-aprofundarmo-nos, acreditarmos em nós, nunca perdermos a capacidade desonhar… Aceitarmo-nos da melhor forma que formos sendo capazes. Encontrarmos onosso propósito e lutarmos por ele como se a nossa vida dependesse disso, quemuitas vezes depende mesmo. Unirmo-nos. Unirmo-nos. Unirmo-nos.