A procura é incessante. Insaciante. Nunca sabemos como vamos acordar amanhã. Fluidez de género é uma viagem permanente. Não estou a ser poética. Não estou a ser poético. Também não vou dizer que é um calvário, tem o seu quê de belo, a permanente metamorfose que nos acontece dentro. Vou aprendendo a gostar-me, nas minhas múltiplas vertentes e nos limbos delas, um dia de cada vez, um momento de cada vez. Bigender fluid - bigénerofluido - se tivesse que ter etiqueta era essa.
Oscilo em muita coisa. É apenas mais uma, que sempre me foi tão natural como respirar, ou talvez mais, respirar já teve vezes de ser um problema, isto nunca. O único senão é a disforia. Crava-se como facas. Não a tenho só de género, tenho-a de capacitismo também, em relação ao corpo funcional, hábil, fisicamente capaz, de mobilidade normativa.
Olho o corpo que não queria vezes sem conta. Não me corresponde. Não me parece meu sequer, tem vezes que pareço ter que acordar-me, reavivar essa sensação de pertencer à pele, ou tudo resta com a noção de sonho - às vezes pouco - lúcido.
Tem dias que queria ter barba. Tem dias que queria ser diva. Todos os dias queria pernas. Todos os dias queria asas. Quase todos os dias acabo por inventá-las. Tem dias que queria ser esteticamente escultura. Tem dias que desejava que houvesse o referencial do que pode ser um corpo bigender fluid, não comprometedor de nenhum dos meus polos. Tem dias que acho que o encanto de eu ser eu é não ter solução.
Desenquadro-me. Potencialmente de cada vez mais maneiras. É o que é ponto. Parece que não nasci para ser linear. Tem dias que já penso sorte a minha, pode ser que carregue comigo algum dia a bandeira do humanismo despudorado, se continuar a aprender a beijar as minhas próprias feridas.
Não, não sei se vou parar de engordar. Síndrome do ovário policístico (PCOS) e prolactina alta (hiperprolactinemia) -devíamos ser mais a falar disto, com urgência. Não, não sei se me vai apetecer depilar-me todos os meses. Sim, a testosterona tem a ver com isso. Em metade da disforia sempre ajuda. Pois não, não faço o exercício que devia. Nem que o fizesse, nem que tivesse as pernas como queria para isso, dadas as estatísticas muita sorte tenho eu em não estar pior.
Tem dias que gostava de ser magra (muitos, demasiados). Tem dias que me martirizo. Tem dias que não queria ter o peito assim (muitos, demasiados), em metade da disforia desajuda. Sim, PCOS tem a ver com isso. Falta de progesterona tem a ver com isso. Hiperprolactinemia tem a ver com isso. Com isso e com mais uma longa lista de complicações. Não, não me chegava ter só um problema. Se calhar chegava, mas vou dizer outra vez, é o que é ponto.
"Não sei o que sou, sei que me sinto dispersa. Não sei o quequero que saibam de mim. Sei que queria deixar de ser presa pelos fantasmas queprovavelmente criei: do não saber já sonhar, do ficar agarrada à vida pelaesperança de um qualquer fio de prumo que me tire do meu vazio ou me estendapelo menos uma mão na escada (talvez seja ela, se não se afastar com este meunão ser nada), do querer aceitar o corpo e todos os dias chorá-lo porque não osinto meu, porque não me sinto eu, porque não me correspondo, porque não seiquem sou, mas sei o que não sou e que muito disso me habita. Do sermulher-homem sem ter a certeza até que ponto hoje e amanhã. Do quase nuncaolhar nos olhos pela ferida enraizada de que não mereço gente comigo, masqueria. Do querer falar e não sair a voz. De me trair o pânico de ter queexistir e fazer ocupar no mundo o meu espaço, o medo da minha bolha de solidãoser interpelada e que me vejam o caos que nem eu sei, que se nota nos meusbraços que se fecham, na minha cara espástica, na minha voz sufocada àtentativa absurda de quebrar o silêncio, cada vez que me olham nos olhos."
Escrevi algures e resume bem onde quero chegar. A procura é incessante, dizia. Mas encontrei uma tábua de salvação. Contra não caber nas caixas da sociedade, não só quis começar a pensar fora delas, como as decidi ir desfazendo com unhas e dentes; não obstante ainda lutar muitas vezes comigo mesma, não sejamos hipócritas e falsos moralistas, mas começo a resolver-me.
Tábua de salvação, dizia. Tornar o meu corpo não higienizado pelos padrões um estandarte do não-binário, antes de ser fotogénico, antes de ser comercial, antes de corresponder ao híbrido que afinal sonhava ser. Deixar de procurar ser estátua polida, acrobática. Antes tornar-me espectro. Antes deixar de importar a (dis)forma do meu corpo. Antes deixar de ser corpo. Passar a ser dança, espástica mesmo, presa mesmo, fazer dos limites o meu próprio padrão de beleza, deixar de me encaixar nos vigentes. Não querer mais ser vigente.
Antes deixar de ser corpo, dizia. Passar a ser arte. Cobrir-me de tinta, de tatuagens. Tornar-me livro feito pele aos poucos que me sabem ler. Antes passar a ser bandeira aquilo que realmente escolho que me representa. Aí sim. Ter-me como proa, porque passo a ser obra, não padecerei de correcções inerentes a padrões externos. Nada mais importará. Serei sereia tatuada. Tornada signo de pássaro livre. Oxalá consiga. A minha libertação será essa, quero acreditar que sim, tornar-me eco da minha alma, grito do despudor. Assim, cobrir-me de tatuagens devolver-me-á a mim. Passo a passo.
(Imagens: screenshot frames de performance por Inês Marto)
Estive a pensar durante uma semana sobre o que escrever a seguir. Acho que tudo isto já se tornou tão habitual para mim, que nem sempre acho que haja tópicos relevantes sobre os quais escrever, relacionados com as rodas. O que era, afinal de contas, o meu objectivo ao criar esta plataforma. Parece que já provei a minha própria tese - bem, foi rápido!
Ainda assim, continua a haver muita coisa debatível, suponho. De repente vi-me perdida a pensar em quais seriam as minhas maiores dificuldades actuais. E, do nada, vazio... Não me lembrava de nada. Por isso é que demorou tanto a escrever um post novo.
Mas finalmente percebi. As minhas maiores dificuldades, grande parte pelo menos, não está relacionada com a paralisia cerebral. Muitas são consequências indirectas de como ela me fez ver a vida, mas há bastante tempo que deixou de ser tanto sobre as questões físicas.
Mas vamos dividir isto por partes, por uma questão de tentar ser exacta (já estou a prever que me vou espraiar em alguns tópicos), mas vamos lá então.
- Fisicamente, as coisas que acho mais difíceis são: transferências de e para a cadeira-de-rodas em situações não planeadas, ir à rua sozinha com a cadeira manual (ainda não consigo subir e descer degraus e rampas íngremes, vamos ver se a cadeira nova ajuda nisso), chegar a sítios altos (tenho 1,40m, por isso levantar-me não adianta grande coisa também), obviamente andar sozinha (mais uma vez olá triângulo amoroso pânico-espasticidade-cair, obrigadinha), dobrar os joelhos e tudo o que possa depender necessariamente disso (isto é devido a uma cirurgia que fiz em 2007, que consiste na trocar dos tendões flexores e extensores dos joelhos, por forma a conseguir esticar as pernas, o que anteriormente não era possível). E assim de repente não me lembro de muito mais.
Ok, agora que essa parte está despachada, podemos passar aos assuntos mais sérios. As minhas maiores dificuldades não são físicas/fisicamente minhas. E, acreditem, é bem mais fácil lidar com as que são. Há aquelas que são relacionadas com essas:
- Foi o raio de um pesadelo encontrar um apartamento que não tivesse um único degrau, sim, em plena Lisboa no século XXI (mas finalmente tenho uma casa!). Usar transportes públicos por minha conta ainda é uma dor de cabeça (outra vez, assim que aprenda a usar a cadeira nova em todo o seu esplendor poder ser que isto mude) principalmente porque quando estou sozinha tenho que usar a scooter eléctrica ( a quem interessar, é uma Invacare Colibri) o que significa ter que esperar por um autocarro adaptado e também que ele esteja vazio o suficiente para conseguir que a scooter lá caiba. E quanto ao metro, "atenção ao intervalo entre o cais e o comboio" não podia ser mais verdade para uma scooter, dos elevadores das estações nem sequer falo, que davam para um post inteiro. Outra coisa tem a ver com a arquitectura pombalina. Adoro Lisboa e não trocava morar aqui por mais nenhuma cidade (não, nem Nova Iorque), mas estes malditos degraus em todas as portas... e já disse que tenho uma tendência para gostar dos cenários mais complicados de todos? Newsflash: sou apaixonada pelos bairros mais antigos... e sim, já tentei ir de scooter por Alfama acima... bem, há coisas piores...
Mas não era aqui que queria chegar. Vamos à nudez então. As dificuldades que mais me impactam numa base diária são:
- Depressão e ansiedade
- Ataques de pânico (às vezes provocados pelas questões físicas que correm mal) que me fazem petrificar e não conseguir mexer-me mais
- Aceitação. Ok, esta é grande, talvez a maior de todas. O meu problema com isto assume muitas formas. Auto-aceitação, para começar: a dificuldade de enfiar na cabeça que eu sou o suficiente, que tento o suficiente e que faço força suficiente. O desafio de acreditar nas minhas próprias crenças até quando o mundo parece colapsar.
- Imagem pública: esta relaciona-se com a anterior, mas não só. A cena do "olha, ela está numa cadeira" mata-me, não vou mentir. As expectativas relacionadas com isso, maioritariamente. As ideias enraizadas de que ou somos completamente inúteis ou atletas olímpicos em ascenção. A pressão social de nos mantermos a fazer terapias, activos, andar mais, tentar mais (sim, tenho noção que também o faço a mim mesma e é uma merda). E ser chamada de preguiçosa, mais do que tudo, como se o que eu faço ou deixo de fazer não fosse opção minha, como toda a gente (incluindo ser preguiçosa se me apetecer!).
- Relação corpo-mente: claro que isto também está ligado ao resto. Mas eu aceitar o meu próprio corpo como ele é (barriga incluída) não tem sido fácil de todo. Aceitar que as minhas pernas não se vão mexer da forma que eu quero é uma das partes mais difíceis de não me ofender a mim mesma e de não me culpar por tudo.
- Sexualidade: isto é um tópico difícil. Definitivamente um post muito em breve. Mas a ideia generalizada de que nós das rodas não a temos ultrapassa-me. E depois os meus próprios medos em ser sexualmente rejeitada por causa desta merda toda... pois.
- Expressão de género: chiça, se eu queria falar disto há séculos! Identifico-me como bigénero. Então claro que uma das maiores dificuldades é não ter medo de expressar o meu lado masculino. Aceitar o pêlo, por exemplo, sem ficar auto-consciente, eu mesma, por causa do que os outros vão pensar. (Brevemente também devia explorar mais isto).
- Estilo de vida: sou uma escritora. Sim, daqueles típicos solitários. Também sou uma coruja e geralmente afundo nas minhas próprias ideias e projectos até às 6h, todos os dias. Detesto completamente as manhãs e evito-as a todo o custo. Mas a questão é, porque raio é que isto não pode ser socialmente aceite? Porque é que soo louca e utópica por viver em prol da minha arte à luz da lua, se isso para mim resulta? Em que é que isso difere de um homem de negócios que acorda às horas que eu me deito para seguir o seu sonho? É que estamos a fazer o mesmo.
E acho que o busílis das minhas dificuldades reside mesmo aí. Em aceitar que estou apenas a lutar pelos meus sonhos e não faz mal. Estou cá para ser feliz e não faz mal, e mais ainda que isso basta. E que as pessoas também entendam isso. Mas se nem eu mesma sou consistente, como é que os outros podem entender, certo? Errado! Completamente errado. Independentemente do quão estilhaçada ou ambígua eu possa ser, eu sei que partes de mim são realmente eu, e quais são apenas reflexos das coisas que disse acima.
E afinal de coisas, era só isso que eu queria. Que as pessoas entendessem que não sou toda feita de pinturas direitinhas e de flores, mas também não quero ser. Ainda que me ofenda a mim mesma demasiadas vezes. Estou a aprender a amar a minha própria escuridão. Estou a a aprender a libertar as minhas cicatrizes (literais e não só). Um passo de cada vez (trocadilho intencional) mas estou a chegar lá.
É isso que quero dizer: sou ambígua e não faz mal. Sou inconsistente e não faz mal. Tenho barriga e não faz mal. Sou bigénero e não faz mal. Sou ginessexual (pessoa sexualmente atraída pela expressão de características tipicamente tidas como femininas, não necessariamente apenas em mulheres - outro artigo a escrever brevemente!) e não faz mal. Sou uma sonhadora e não faz mal. Sou poliamorosa e não faz mal. Ainda estou a aprender e não faz mal. Sou eternamente mutável e não faz mal. Ainda tenho dificuldades e não faz mal. Ainda por cima sou contraditória também e, adivinhem, não faz mal! Principalmente: sou real. E qualquer dia neste mundo isso não vai fazer mal.