Sonhar-nos
Olho o céu silencioso nas paredes descascadas dos prédios estrelados da cidade. Em cada janela de luar imagino a nossa vida acontecer, enquanto espero o autocarro que me leva a um destino tão diferente do que queria.Vejo-te chegar em cada casa viva.
Na paragem, uma mulher aperta nervosamente o chapéu-de-chuva feito cobaia, como se isso fizesse o tempo acelerar. Na luz das salas alheias, imagino-te a entrares e pousares a mala despreocupada no sofá branco com manchas de te amar, enquanto me procuras com os olhos ansiosos embora não mais que os meus.
O frio da noite antecipada mergulha-me na pele. A mulher da frente com o cabelo de pontas espigadas insiste com o marido para que tire o jantar do forno e ponha os miúdos no banho, não é mais que a obrigação dele, pelo amor de Deus. A conversa serve-me de embalo a sonhar-nos. Pouco ouço. Realmente, ouço mais o pobre chapéu-de-chuva a ser estrangulado sem dó nem piedade. A verdade é que me interessa mais sonhar-nos do que ouvir o que quer que seja.
Quase te ouço dizer com a voz cansada de quem espera os meus braços antes de mais um passo "Amor, cheguei!" e apresso-me a correr para ti em pensamento com quanta força tenho, para te dissipar o peso dos dias no encaixe dos nossos corpos a trespassar a saudade.
O autocarro chega, toldando-me a vista de onde queria estar. Não por muito tempo. Voltar a ti nunca demora, pelo menos desta forma. Sonhar-nos é fácil demais. E é bom demais.
Acendo-te o cigarro e deixo-te deitar a cabeça ao meu colo. Palavras são um mal desnecessário, quebrariam o Deus que ali se faz todos os dias do nosso amor. Afago-te o rosto. Beijo-te a testa enquanto fechas os olhos e suspiras consumando o nosso silêncio que se faz fogueira de Inverno.
Nada acontece senão amar-te no sofá branco manchado só dos nossos corpos. Porque nada melhor pode acontecer. Sonhar-nos torna-se ópio e não quero acordar. Peço à vida que me deixe alucinar. Vem.