Poeta da Lata
Este texto foi escrito a propósito de um concurso de escrita já terminado, subordinado ao tema "Dar de si, antes de pensar em si." que agora publico. Boas leituras.
Estavas mais uma vez sentado no muro de cimento, bebias a vista das colinas com o metal dos telhados a reluzir no nascer do sol, qualquer um a acharia uma paisagem arrepiante, pobreza, doença, fome, morte, ecoavam por cada canto. Mas tu não, tu vias ali uma oportunidade de dar mais de ti ao mundo… e entregavas-te totalmente.
No pequeno caderno já puído pelo tempo, dançavas majestosas palavras, segurando no lápis gasto e roído como quem pega num cravo em Abril e luta pela paz. Tinhas aprendido a escrever bem novo, com o avô… nada demais, apenas frases simples. Porém, a tua poesia não se podia aprender. Bateu-te à porta e tu, ainda a medo, deixaste-a entrar. Pouco a pouco foste crescendo enquanto gente, lado a lado com os versos.
A vida dura dos bairros de lata era para ti uma motivação, um mote para chegares longe e não desistires. Apenas sabias fazer poemas, não tinhas escola senão a da árida vida de um pobre, mas da pobreza fazias ouro, pintando suavemente no papel os versos que sonhavas um dia mostrar ao mundo.
Lutavas com todas as forças, empunhando versos em vez de lanças, coração em vez de fel, do nascer do sol ao manto negro do luar, sentavas-te no velho muro de cimento e davas tudo de ti, escrevendo poemas. Voavas… voavas para bem longe dali. E então sonhavas mostrar ao mundo a realidade onde te fizeste mais humano. Onde brilha o olhar de uma criança quando lhe oferecem uma flor do campo, onde o pouco que se tem dá sempre para mais um…
Escrevias de alma e coração, de amargura e entranhas, com mágoa, com paixão, transportavas todo o mundo num só verso, esperando que a voz chegasse então mais alto e pudesses soletrar ao mundo num só gesto o que é “ser mendigo e dar como quem seja rei dos reinos de aquém e de além dor”
Querias acima de tudo fazer da vida um soneto, mostrar ao mundo o que é viver debaixo daquelas chapas prateadas reluzentes e como isso te faz gente maiúscula. Enchendo os corações de todos com a substância de que se fazem os versos, esperavas então que, vendo como tu vês, soubessem dar tudo de si à arte de Camões, tornando-se mais Humanos e aprendendo a ter “alma e a sangue (…) e dizê-lo cantando a toda a gente”.
Com os poemas que escrevias, podias facilmente tornar-te Poeta famoso, estava nas tuas mãos e podias perfeitamente agarrar esse destino. No entanto, preferias manter-te humilde e ver de perto o choro de uma criança com fome, porque te alimentava os poemas.
E porque sempre que alguém te perguntava de onde vem a inspiração de tão brilhante sonhador, conseguias fazer-lhes estremecer a alma, retratando em breves cartas para o mundo deles, dos ricos, essa Ilha dos Amores de latão, em que as Tágides cantavam súplicas por um pedaço de pão.
Assim, embebidas no teu verso, chegavam mãos estendidas de ajuda à terra do pobre Poeta, do Poeta pobre por opção. Podias ser um senhor, de fato e gravata a aparecer na televisão, mas preferiste manter-te pobre e maiúsculo, porque davas de ti ao mundo, mesmo antes de pensar em ti mesmo, sabias do teu talento e sabias usá-lo com o coração.
O Poeta da Lata, como ficaste conhecido, começou então a atrair o olho curioso e vazio dos ricos, geraste neles uma revolta, arrepiaste-lhes pouco a pouco a alma dormente, foste espalhando nas rimas uns pós de perlimpimpim, entregando tudo de ti aos versos feitos em cima do muro. Começaste então a humanizar os ricos, chegavam-te lágrimas comovidas em cartas e mais cartas, espanto e admiração…
Os versos aos meninos-coragem estavam então a dar frutos, o muro de gelo entre ricos e pobres derretia com o calor de poemas sentidos sobre a colina da fome.
À força da poesia, moveste mundos com “garras e asas de condor”, mordeste como quem beijava suavemente a mão enfeitada de jóias reluzentes e abriste-lhes os horizontes para que vissem mais longe.
Poeta da lata com musas de pé descalço, deste tudo de ti ao mundo, versos soltos num velho caderno, sentado no muro a olhar o sol ao longe, eterno sonhador com a garra de um guerreiro, voaste entre linhas, humanizaste a gente, mostraste que a poesia está na forma como se sente. Escreveste bocas com fome como beijos de cetim e mãos vazias de pobre como gestos de bailado, tornaste então as favelas num belo poema alado.