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INÊS MARTO

INÊS MARTO

Podia vê-la passar

Podia vê-la passar, todos os dias da sua vida. Irrepetivelmente. Ininterruptamente. Irrecuperavelmente. Cada vez como cada qual. Cada dia uma nova galáxia acesa no néon empoeirado da sua esperança. Cada vez um som último a  ecoar na reminiscência do silêncio quente de estar só.
Podia vê-la passar, todas as horas do seu caminho. E deitar-se na cama de rede do seu abandono. Cada vez como nenhuma antes. Cada hora um novo átomo a elevar-se a dimensões onde não cabe o hoje do seu sentir.
E tactear-se o corpo frio, próprio, seu, só. E sentir-se os poros dilatados de sonhos. Cada vez um despontar. Cada tempo um renascer.
E ansiar tocar-lhe as pontas dos dedos com os lábios sumarentos e percorrer-lhe a silhueta num contra-luz de cinema.
Plantar-lhe flores nos mamilos e ondas do mar no cabelo e semear-lhe nos olhos esperanças e nascer-lhe amor nas costelas e segredos nos joelhos e promessas no pescoço.
Podia vê-la passar, todos os sempres, na cama de rede com cheiro a lençóis de outono. E sonhar ser-lhe sombra e âmago. Colher-lhe o peso dos passos e fazer dele um colar de contas que pendurasse ao pescoço do seu corpo nu.
E esperar por um nunca que não tarda, sobre o chão de madeira de pinho polido a lágrimas secas. Recostando-se na sede de lhe ser a cama derradeira e nada mais. Podia vê-la passar, todos os tempos que lhe coubessem na alma.
Deitar-se-ia no empedrado das próprias ânsias, observando-lhe o caminho de longe, com a tranquilidade de um fim-de-vida que se atrasa em começar. Podia vê-la passar, sabendo ser sopro oco, eco, nada. Com a paz de quem não voa, paira. E de quem não está, permanece.
Podia vê-la passar... num tempo sem quando, num quando qualquer, num qualquer perpétuo, num perpétuo infindável, num sem fim de universos onde talvez coubesse a dimensão desse amor.