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INÊS MARTO

INÊS MARTO

O corpo inerte e o pensamento filosófico

Como a realidade da quietude forçada me leva a um mundo maior e incuba tendencialmente a filosofia e a arte em mim, por me alastrar naquilo onde consigo: o caminho mental.


 

 

 

Assim que acordo, dia-após-dia, a noção da divergência dos meus padrões de movimento face aos de mobilidade normativa está presente. É uma presença quase latente, por existir desde que eu própria existo, mas nem por isso deixa de estar lá. 

Afigura-se quase como a consciência da nossa própria respiração – ela acontece, por si mesma, automática, só se torna manual se induzirmos a autoconsciência sobre o processo. Do mesmo modo, a pronunciação da minha própria noção de padrões de movimento diferentes está cá, apenas se encontra numa espécie de ciclo automático. 

Seria assim. E é, em parte. É assim a minha autoconsciência de padrões físicos, pelo menos enquanto o meio envolvente me permite situações de conforto e não esforço, aí facilmente me esqueço de mim. 

Por exemplo, de momento, estando sentada na cadeira-de-rodas, a redigir este mesmo texto, não me lembraria que estou como estou, caso não tivesse que me despertar sobre isso para o escrever. 

 

No entanto, não obstante o hábito em relação a grande parte do que decorre no dia-a-dia, que atenua mais essa consciência, ou pelo menos a normaliza; basta-me precisar de ir buscar um copo de água ou abrir a porta, para o meu circuito de pensamento já ser completamente diferente. 

Desde logo tenho que pensar como o vou fazer. Como conduzo a cadeira, para dar espaço de abrir a porta, como transporto o copo enquanto volto para a secretária para não entornar a água. Como acordo e saio da cama e me visto e me calço, se conseguir, nem sempre consigo, e como vivo. 

Então, desde logo, uma boa parte do meu movimento está associada necessariamente a pensamento lógico, planeamento estratégico e geralmente esforço. O que faz com que sejam as situações mais inertes aquelas que me colocam menos alerta, e, por conseguinte, mais confortável e mais tendencialmente inclinada ao pensamento livre e filosófico. 

 

Contudo, estamos ainda a tocar apenas numa parte muito superficial da minha noção corporal. Regra geral, tudo isto que descrevi se processa sem que eu própria tenha que pensar muito sobre isso – ou há mecanismos e técnicas já aprendidas ao longo dos anos, que enraizei, ou, para o que não faço sozinha, felizmente na maioria dos casos ou encontro soluções ou consigo conformar-me a alternativas. 

No entanto, há particularidades acerca da paralisia cerebral, diplegia espástica, que tornam muitas vezes difícil esquecer-me do meu próprio corpo, e manter toda a noção de mim mesma latente. Principalmente a espasticidade, como o próprio nome indica. Que consiste nas permanentes sinapses cerebrais para contracção involuntária dos músculos. 

 

Isto é, na prática, a paralisia cerebral além das limitantes no que respeita ao movimento em si, torna-me também um corpo permanentemente tenso, o que faz com que me sinta mais. Sobretudo com estímulos, a grande probabilidade é que me contraia, mesmo sem querer. No meu caso específico, resulta num padrão de corpo esticado, maioria das vezes, e voz tolhida, de respiração mais curta. 

Já tenho isso como normalizado, tanto é que perco a noção que o faço e, muitas vezes, se me vir por exemplo em gravações de vídeo espontâneas, não tenho noção de determinadas posturas ou expressões. Mas, no momento em que decorrem, mesmo que as tenha enraizadas como naturais por força de hábito, a verdade é que, pela contracção, me trazem a mim e me lembram de mim. 

 

Tudo isto me leva a sentir mais conforto em dois polos opostos – ou naquilo que me foque necessariamente no meu corpo, e talvez assim extravase o overload que sinto subliminarmente todos os dias (como é o caso por exemplo de nadar, onde sinto o corpo com mais liberdade, ou do processo de ser tatuada, em que a dor me chama permanentemente a mim e me faz “habitar” o momento, escolhendo algo que me dói porque eu quero que doa, e marcando o meu corpo porque eu o quero marcado, permitindo-me assim algum domínio sobre ele). 

Ou então, o extremo contrário disso, aquilo que me permita o mais possível a alienação e o esquecimento momentâneo. Situações como escrever, ver filmes, ver peças de teatro, ouvir música, enfim, tudo aquilo que me transporte para fora de mim, funcionam como um bálsamo, porque me permitem habitar a esfera onde sou mais livre do que a do físico: a da mente. 

 

E talvez agora esteja a chegar ao cerne da questão que aqui pretendo provar. Maioritariamente, procuro formas quietas de estar, porque me permitem adensar-me mais. 

Ciclicamente, então, é nessas áreas que mais me desenvolvo. No explorar da escrita, das artes cénicas, no observar, no estudar, no descobrir e aprofundar padrões daquilo que me rodeia, na curiosidade em entender e sentir o mundo e como ele em mim se recria e reverbera. 

Não só, portanto, o desenvolvimento autodidata que faço dessas vertentes me permite ocupar o meu tempo da forma como me sinto mais eu – sem aparentes, ou pelo menos activamente notórias, limitantes – e portanto me leva a escolhas de vida que preferencialmente passem por isso, como, circularmente, por escolher repetidamente esses caminhos para o meu tempo, me aprofundo mais no conhecimento, na sensibilidade e na abertura para eles, e vou descobrindo também outros e novos temas paralelos, tornando-se um mundo cada vez maior aquele que descubro, lendo, investigando, observando e filosofando. 

 

Um factor interessante de notar aqui também, são as cumulativas vezes em que quem me conhece virtualmente e pela escrita sente dificuldade em acreditar na minha idade cronológica. Creio também prender-se a resposta a essa questão exactamente à quietude física versus a longinquidade onde chego no pensar. 

Fisicamente, a realidade é que não vivi muito, pelo menos não tanto, nem metade sequer, do que uma cabeça sonhadora como a minha gostaria de viver. Em sensação física das experiências tenho um quotidiano, digamos, pouco temperado, para quem na verdade gostaria de perder amarras. Facilmente sou tida, por isso, como insossa ou banal à primeira vista, o que a minha natureza introvertida ajuda, mais o estereótipo que já traz por si só o “elefante na sala” que é uma cadeira-de-rodas, quer eu queira, quer não. 

 

Mas, mentalmente, não é isso que acontece. Na escrita também não é isso que acontece. Quem cria o primeiro impacto desse modo, tem de mim uma representação muito mais fiel daquilo que sinto que sou. Tanto é que coleciono um considerável rol de reacções de espanto, quando me encontro com quem chegou a mim assim e me desconhecia. Tenho na escrita o ponto de fuga. Tenho na escrita, e no pensar artístico, criativo e filosófico que lhe está associado, a minha forma de ser do tamanho que realmente sou e ainda me suplantar. 

Tenho na escrita, e na quietude dela, e em quase todas as janelas mentais que abro a descobrir mais mundo, que acabam por nela desaguar, o meu modo de chegar mais longe. O forçar-me ao corpo destitui-me desse meu propósito. É no despojar-me dele que indubitavelmente me sinto mais, e que produzo aquilo a que quem me conhece chama carinhosamente de “espasmos poéticos”, que realmente sinto irem ao encontro da minha essência e que a elevam. 

 

Creio que se fosse livre em corpo como sou em espírito, talvez não tivesse todo este mundo dentro, pelo menos não ainda. A idade não me corresponde. O tempo mental de quem se “auto-navega” é rápido demais para os relógios. Não será também ao acaso que quem me lê me chama até de “old soul”. O tempo da descoberta não espera pelos ponteiros. 


Mas acredito que se pudesse não ser presa pelas minhas limitantes – e especialmente já tendo estado deste lado e tendo noção do que perco – muita coisa não seria como é. 

Não seria assim, porque teria (e tenho, com teimosia continuo a ter) uma imensa vontade de viver o que não posso, de chegar onde não chego, de ir onde não vou, e sobretudo intensamente, e sobretudo longe, e sobretudo de modo tão frenético e assoberbado, que não me restaria tempo para pensar, nem para me adensar, nem para saber quem era, só para me sentir de uma vez e apenas – só para compensar tudo aquilo que me falta – só para o reverso da medalha, perdendo os limites de vista. 

E aí, não acredito que filosofasse, que me preocupasse em ler e investigar, que quisesse perder tempo quieta a escrever, se podia dançar de pé, se podia ser dona de todos os meus passos, se podia permanecer no fio da navalha e dar-me ao luxo de escolher brincar com a sobrevivência. 

 

Seria hipocrisia minha, se não admitisse que são muitos os dias em que trocava uma coisa por outra, caso tivesse escolha. Mas na realidade não sei até que ponto me sentiria completa. Não sei até que ponto sentiria propósito. Não quando tanto do que sou se assenta no que escrevo. E aí, chego até a agradecer, pela quietude que me é forçada, porque a afirmação mais franca que posso fazer é que não sei quem seria se não filosofasse, se não habitasse os mares que construo dentro, se não fizesse tudo o que aqui descrevi, que me abandona do eu físico para me espraiar onde ele é livre, e que tem no seu pináculo sempre a escrita. 

 

Concluo que as limitações que tenho enquanto corpo móvel, hábil, funcional, não só me tornam quem sou por não me deixarem outra escolha, como por me fazerem aguçar ao máximo todos os outros potenciais que não lhes estejam inerentes, numa espécie de acto de plasticidade cerebral aplicada à própria construção do self, em que faço uso do espaço que seria do corpo, para me aumentar no que me resta. 

Aliás, a própria experiência de redacção deste trabalho acaba por ser reflexo de tudo aquilo que tento defender: na inércia física em que redigi tudo isto, tacteei-me e percorri em mim distâncias enormes, potenciei um expoente maior da minha auto-descoberta e permiti que acontecesse aquilo que é por definição o meu meio de me expandir. 

 



Conclui-se circularmente, por tudo o que acabo de escrever, processo que é em si espelho do que ilustro, o que creio ser o ponto final ideal da minha reflexão livre, a metafísica do título: o corpo inerte no pensamento filosófico.

 


Dissertação produzida como proposta de avaliação à Unidade Curricular de Teoria e Estética do Teatro, da Licenciatura de Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, docente Anabela Mendes, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018.


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