Náufrago (Carlos Vieira)
Sinto saudades tuas e de quando me habitas. À falta disso, não sou se não paredes devolutas de uma casa naufragada em pó e ponteiros. Fazes-me falta, por muito que me pese em confessar-to. Pesa-me também que vivas sem mim tão leve e intacta e segura dos teus próprios passos. Mas ao mesmo tempo que me pesa, conforta-me saber que não precisas de alguém como eu.Por muito que me concretizasse o precisares de mim, a ti, ia destruir-te aos poucos como a morte certa de um cigarro na neblina de uma tarde de outono à saída de um hotel qualquer.Sou como o mar, cujo aparente encanto, passando o tempo deixa apenas marcas e erosão nas rochas que nada mais fizeram se não ser-lhe ocupantes, preencher-lhe o vazio estado líquido de existência vã e salgada e fazê-lo casa.Nada mais fizeste tu se não fazer-me casa a mim e dar um propósito à carne e à pele e aos átomos que passeio dia após dia em passos pesados, cinzentos e sempre banais. Consequência desta minha tendência ao pensar excessivo, apercebi-me antes que o tempo tardasse a mais para serem irreversíveis as carícias erosivas que te ia decalcando no corpo.E vim embora sem to poder explicar. Não ias entender, nunca ninguém entende, pois que nunca ninguém ao olhar o mar se lembra da erosão, perde-se sim a pensar na sua grandeza. Julgas-me desapaixonado de ti, por tua lógica. Pois é o exacto reverso que me levou a partir. A minha densidade sem querer atracar-te-ia de mansinho a uma existência inquieta de quem não se conforma com os dias porque sim. E esse peso não quero nunca dá-lo nem dividi-lo nem afigurar-me sê-lo para ninguém. Apenas urjo em que saibas que te deixei unicamente por te querer demais. E recear que o meu querer-te te afogue na obscuridade que no fundo só tu serias capaz de estilhaçar.Sem mim tens mais asas, que não sei ser se não âncora. E mais leme, que não sei ser se não porto. E mais sonhos, não sei ser se não sal. E mais vida, não sei ser se não poeta.Carlos Vieira