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INÊS MARTO

INÊS MARTO

Mapa sem x

O sono era envolvente como manto subcutâneo de um peso leve mas entorpecedor. De novo desencontrada, naquele espírito de Maria Ninguém, bússola perdida como uma gaivota inebriada que sobrevoa o areal fora de horas.

As perguntas eram muitas e ao mesmo tempo um saco vazio tal e qual um balão roto ou uma garrafa partida na berma da estrada finda a festa e esbatidos os passos inconsequentes e trôpegos rumo a casas onde o nome só assenta num esfumar de ilusões.

Que era das certezas já ninguém parecia saber. Pior. O mundo parecia feliz assim, ou pelo menos conformado. A multidão como gatos pachorrentos numa tarde de Quinta-Feira de sol, a subir e a descer as colinas de calçada escura de um bairro com cheiro a sardinheiras de varanda continuava as suas vidas numa rotina que já chega sem aviso e permanece sem nunca se anunciar.

E isso parecia bastar-lhes, como se as malfadadas mentes ou consciências ou grilos mais chatos que professores centenários em aulas expositivas de madrugada tivessem um interruptor para desligar, e a sua não.

E porquê? Mistério esse, afigurava-se enterrado para lá do centro da Terra, num outro hemisfério qualquer, algures numa dimensão onde provavelmente o que mais importava nem era o dinheiro nem o tempo nem o jantar de amanhã nem a hora de acordar nem o preço daquela camisola jeitosa na montra da enésima loja do dia que pisca o olho, mas o bilhete do comboio sem destino e o fazer o que dá na real gana à laia de ser feliz no momento e o quanto ele vale e os traços e as mãos e as histórias e os dedos e as memórias e as unhas e mais o que fica escondido debaixo delas e o que as rugas têm para contar.

A sua verdade, essa devia andar escondida num mapa sem x nem escala, de uma terra sem nome nem gps que lhe valha. Onde se encontra quem já não quer ser daqui. Onde importa mais o cigarro de madrugada à varanda sem casaco porque o arrepio inspira um poema novo do que os gritos desalmados de um despertador que arrasta para um dia-a-dia sem porquês nem sal.

E se era triste mais vezes que contente, condição de pertencer a uma massa de poucos e que falam baixo porque faz mais sentido assim, nada a fazer. Continuaria a remar contra a maré, enquanto houvesse remos, depois mãos e corpo e pele. Perdida por perdida, o mar assim era salgado. Salgado e seu.