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INÊS MARTO

INÊS MARTO

Mãos-esconderijos

O par de mãos ligeiramente salpicadas pela idade escondia o nervoso miudinho constante de ser bomba-relógio por condição, muitas vezes apertavam-se, contorciam-se, prendiam os dedos com os polegares dobrados sobre eles, como quem roda anéis imaginários sobre os dedos carentes. Acima delas um lábio trémulo da boca desenhada a pincel, e uns olhos inquietos condutores de altas voltagens permanentes.
Pousadas sobre os ombros as incertezas, que se deixavam descair como as mangas de uma camisola larga. E, como balões de hélio, os sonhos presos à nuca por pequenos fios de pesca guardados da infância que nunca fechou a porta.
As pálpebras contráteis anunciavam, vezes múltiplas, o riso, para os mais atentos, que lhe viam tudo nesses dois espelhos que davam choques na alma. Esse riso como uma vela-foguete a parar o tempo de quem o ouvisse, que, vezes tantas mais, saía pelo gatilho da tal bomba-relógio, feito máscara-bote de salvação do dia-a-dia que penetrasse fundo demais um peito por si só profundo em excesso, mas nem por isso menos encantador do que quando autêntico. Tratava-se só e apenas de mais um puzzle como tantos nessa complexa e infindável Da Vinciesca personalidade talhada a jogos de madeira por decifrar.
E se era por um lado um cryptex feito gente, por outro chegaria o toque certo, o tempo certo, o silêncio certo e a honestidade de uns braços abertos, para, ainda que por momentos, se tornar areia num colo com sorte, e parar o contra-tempo do relógio dessa bomba de todos os dias, no cair da máscara em que se revelassem as feridas ávidas de beijos, mas retinentes, vezes demais, dessa nudez.
Os fios de pesca dos balões de hélio eram rastilhos de acender um par de asas como havia poucos. As mãos-esconderijos eram duas portas de contrastes, desses de quem sentia demais, a quem cabiam na alma montes e vales e rios e mundos e mares, que disfarçava com velas-foguete, em tentativas-placebo de dispersar o que no fundo penetrava tão facilmente para o coração como se de tatuagens se tratasse.
Porque tinha coração de esponja. Porque era do tempo que correu depressa e chegou antes de começar, dos passos que não se apanham, dos mundos que não se acompanham, das mentes que não se sobrevoam, dos labirintos que não acabam. Porque tinha como lei de ordem o crescimento permanente, era um peixe fugidio, num ambiente-aquário onde as paredes de vidro se saltavam com um simples passo de dança.
Porque nos dedos rodava esses anéis imaginários como quem pensa nos próximos voos e não se deixa parar, e não se deixa apanhar, e não se deixa limitar, e não se deixa escrever. Porque as mãos-esconderijos eram duas portas de um vórtex que se recusava a ter fim, se recusava a ter fundo, tinha asas, balões, barbatanas, montes, vales, rios, mares, máscaras, bocas desenhadas a pincel e olhos-espelhos, e no âmago um baú do imenso contraste entre uma complexidade de camadas tantas como uma tela de séculos na memória do espírito, e uma simplicidade da infância que, mesmo com a profundidade de mil oceanos na alma, continuava a não fechar a porta.