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INÊS MARTO

INÊS MARTO

Era uma vez

Ali estava eu. Um minúsculo acumular de energia, dizem. Sempre a querer reparar em tudo e todos os que entrassem na sala onde eu estava deitada numa encubadora, com uma bandolete e provavelmente um par de botinhas cor-de-rosa tricotadas pela minha avó.
Aconteceu tudo devido à minha pressa de nascer, ao que parece. A minha mãe conta que tinha feito mousse de chocolate, nessa noite para o jantar, quando de repente rebentaram as águas. Às vezes pergunto-me se não era o meu dentinho doce já a manifestar-se. Ou isso ou a minha ansiedade já nasceu comigo.
A história aconteceu assim: a mãe tinha 38 anos, já uma gravidez de risco em 1995, era agora ou nunca. Eles não achavam, de maneira nenhuma, que eu já estava pronta para dizer "cucu". A mãe foi para o hospital. O pai dava aulas muito longe de casa. A mãe diz que destruiu uma almofada com os dentes à conta das dores. A próxima coisa de que se lembra é da minha cabeça já ser visível. Na 26ª semana de gestação. Eles dizem que a nossa pele (somos gémeos, sim) era tão frágil que se conseguia ver através das pontas dos dedos. O meu irmão, por outro lado, não sendo nada ansioso (há coisas que nunca mudam) teve que ser puxado a ferros, no que imagino que tenha parecido e doído como uma cena do The Shinning.
Não há assim tantos detalhes dessa altura. Suponho que a tendência e os conselhos tenham sido para esperar o pior. O coração e os pulmões ainda nem estavam completamente formados. Tudo o que se podia ver era basicamente tubos e monitores a apitar. E quatro mãos pequeninas, dois pares de olhinhos curiosos e determinados a descobrir o mundo à volta deles.
Não há fotografias da nossa primeira semana. E para ser sincera convosco, até para mim, as primeiras que nos tiraram são demasiado chocantes para publicar. A mãe só nos pode pegar ao colo no segundo dia. O pai diz que tinha medo de nos partir ao meio, durante muito tempo. Nem sequer havia fraldas para o nosso tamanho ridiculamente pequeno, nem sequer as dos prematuros. A mãe conta que simplesmente nos encostavam uma bolinha de algodão e costumava durar. Um detalhe também interessante: a nossa banheira era uma daquelas tigelas em inox como as das cantinas das escolas, tudo o resto era grande demais (se calhar isto não era um mau mote para um filme do Tim Burton). Até chegaram a dizer por graça que cabíamos numa caixa de fósforos. Pelo que sei, demos pesadelos a muita gente, e de certeza muitas noites sem dormir aos nossos pais.
Passámos um mês no hospital, com paragens cardio-respiratórias frequentes. Uma dessas deve ter causado a minha paralisia cerebral. Mas ainda estava muito longe de ser diagnosticada. Posso acrescentar que os anos seguintes também foram um entra e sai de inúmeros hospitais, já que tinha um sistema imunitário de papel. Tornei-me familiarizada com máscaras de oxigénio até antes de conseguir dizer a minha primeira palavra (que foi cedo como o caraças - 9 meses - e provavelmente foi "não", que ironicamente é uma das que mais me custa a dizer nos dias de hoje).
Assim que chegávamos a casa de outra estadia no hospital, voltávamos a ficar doentes. E se um ficasse bom, passava ao outro antes que alguém conseguisse ter tempo de respirar.
A mãe é educadora de infância. Na altura, já trabalhava há bastante tempo num centro de reabilitação física. Há tempo suficiente para conseguir perceber quando é que algo de físico estava mal. E a verdade é que eu nunca mais começava a conseguir rastejar, ou até segurar a cabeça com facilidade, nem conseguia mexer bem os braços e pernas.
Os médicos diziam que era apenas desenvolvimento mais lento por ter sido prematura e que eventualmente crescia e isso ia passar. Mas tendo em conta que eu quase não tinha reflexos nenhuns sequer, mais cedo ou mais tarde decidiram parar de dizer à mãe que ela estava paranóica com isto. Diagnosticaram-me paralisia cerebral, diplegia espástica. O nosso mundo desmoronou. Aquele amendoim pequenino, que nem sequer era suposto ter sobrevivido, tinha acabado de receber uma declaração de guerra, para lutar literalmente por cada passo da sua vida para o resto dos dias.
Mas, pelo que me recordo, recebi tudo sem grandes reclamações, sendo que nem sequer tinha ideia do que era viver sem isso, de qualquer forma (embora daí a aceitar realmente as coisas vá uma grande diferença, mas a aceitação de uma deficiência crónica é outro capítulo dos grandes, basicamente ainda aberto, sobre o qual hei-de escrever um dia).
A próxima coisa que sei  é que já fazia fisioterapia. Mais ou menos aos 6 meses. E não parei durante muitos anos. Tive a sorte de isto afectar apenas a minha parte motora. Mas, ainda que seja difícil de acreditar para a grande maioria das pessoas que me conhecem, durante os primeiros anos da minha existência eu era uma miúda que se babava e não conseguia fazer coisas que envolvessem motricidade fina, nem sequer segurar um lápis "correctamente". (A minha experiência mais arriscada de sempre chama-se rizotomia dorsal selectiva e mudou definitivamente a minha vida nesse sentido, aconteceu com 6 anos de idade, no British Columbia Children's Hospital, em Vancouver, no Canadá).
Não me lembro de muito, desses primeiros anos, obviamente. Mas de uma coisa tenho a certeza: era uma vez um minúsculo acumular de energia que já nasceu teimosa que chegue para desafiar os limites impostos. E aqui continua ela.