Tinha jurado que não voltava a escrever. Eram cinco da manhã, vesti o casaco comprido velho por cima do corpo, calcei as botas e saí, toldada pelas lágrimas. Calcorreei a avenida sem distinguir o chão, não via mundo à volta. Nem sabia se existia.Atravessei a cidade, ou assim me pareceu. Sentia-me transparente. Carros de outras vidas seguiam o seu rumo. Eu chorava. Abençoada solidão. Se estava frio não o sentia. Talvez a tua morte me tivesse tornado subitamente imune a essas infimidades de quem está vivo. Talvez tivesse morrido contigo também. Talvez afinal te tivesse agarrado com tanta força que consegui ir, como te dizia em tom de brincadeira, afirmando nos meus risos de criança que não me havias de deixar sozinha. Se calhar deixei cá o corpo só. Nessa noite pelo menos, sentia o triunfo de ter partido contigo.Sem saber como, cheguei ao cais. Deixei-me cair sobre o chão que não tinha. Fechei os braços sobre o corpo e deixei-me ser. Olhei para cima, como desde então olho sempre para te encontrar. E quando te vi acreditei. Talvez tivesses levado um pedaço de mim contigo, sim. Mas deixaste a raiz. Não me havias de deixar sozinha, tinha razão, habitaste-me então como nunca.Tinha jurado que não voltava a escrever. Mas trespassaste nas minhas mãos a sabedoria da terra. E a irrecusável missão de semear o que deixaste em mim do teu coração xamânico, que empresto às palavras a cada dia mais. Quando te vejo e te sinto e me permito à tua viagem, acredito. A cura do mundo pelo amor vale a travessia de ficar.