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INÊS MARTO

INÊS MARTO

Bastas-me tu

Não digas nada a ninguém. Vem e pousa-me sobre a pele. Ninguém precisa de saber, podes vir pé-ante-pé nesse jeito só teu de caminhar. Vem, não olhes para trás. Deixa as mãos nos bolsos e os olhos caídos sobre o ontem feito calçada irregular das ruas que pisas, absorta de ti. Vem sem que mudes nada, habita-me.
Despe o esforço das palavras, bastas-me tu. Não digas nada a ninguém, deixa-te ficar apenas. Deixa o relógio na rua que o tempo não cabe na nossa porta. Anda, vem fazer do nosso mundo um lugar de mãos e fumo e néon e lábios semi-abertos convidando a suspirar.
Ninguém precisa de saber, podes vir desse teu jeito de quem está só a flutuar. Assim apenas as águas embriagadas de calma te saberão beijar os poros delicados do corpo de cinza astral.
Deixa-te cair no vazio da minha cama que é nossa, qualquer que seja o colchão está sempre moldado a ti. Habita-me as cigarras incessantes que me ensurdecem o silêncio mental. Cala-me esse apito agudo que ecoa no coração de ser só. Basta que venhas, não digas nada a ninguém.
E que te percorra os ombros como quem folheia tempestades de um deserto de sonhos, fazendo sonetos das pontas dos dedos tornados teus nos lençóis que te envolvem no templo da minha saudade.
E que te beije as costas numa apoteose de solidão ancorada a tectos de espuma que se desfaz sem deixar rasto na praia da minha boca contra as tuas vértebras onduladas num oceano ansiado.
Não digas nada a ninguém. Vem sem que te pese nem uma gota. Deixa lá fora o existir. Desfaz a poeira do que o mundo te exige. Não esforces. Não penses. Deixa lá fora o mapa. Deixa lá fora o sentido. Não controles. Deixa de pisar o chão. Levanta os pés da terra. Vem, deixa de ser. Deixa de ser. Isso. Vem. Não existas. Fica apenas. Temo-nos mutuamente. O resto são migalhas de ser gente. Bastas-me tu. Vem pousar-me sobre a alma. Não digas nada a ninguém, dentro da nossa porta far-se-ão mundos sem fim. Isso, não existas. Não existamos mutuamente. Queimemos o existir numa fogueira só nossa que não se apague ao relento. Vem, vamos ser nada. Bastas-me tu.

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