À laia de viver
Ela era feita de carapaças múltiplas. Daqueles seres que inquietam ao passar. Carregava no seu porte uma aparência de rocha. Tinha o mundo aos ombros por convicção. Os muros construídos por medida intercalavam-se em labirintos que tinha que achar indecifráveis, à laia de viver.Ela andava sempre segura dos próprios passos. Ela era feita de alegrias só. Ela tinha toda a gente que quisesse e o mundo na mão. Ela vendia amor próprio. Ela segurava mundos alheios como um equilibrista. Ela era forte que bastasse para tudo. Ela era sozinha e orgulhosa disso. Ela achava que, se se convencesse destas verdades, elas passariam a sê-lo. Porque o tinha que achar, à laia de viver.
Com os mãos nos bolsos e o olhar alheado à espera que os pensamentos o seguissem por força de continuar no seu móvel espelhado de ilusões, florescia inversamente, fechada de si e em si, construía camadas na sua maior obra-prima de todas. Tornava-se escultura aos olhos de todos, num andar que paira, intocável às feridas pelo estandarte da idade. Não perdia tempo com futilidades, tinha limpezas a fazer dentro de si. Não podia, de forma alguma, descurar a sua mais brilhante criação. Mantinha perfil de árvore, fincada na terra que mais bem lhe apetecesse, cada dia onde quisesse, ao sabor da sua vontade, ou pelo menos assim teria que fazer ver, à laia de viver.
Ela havia-se esquecido que todas as esculturas podem partir. Ou assim fingia, à laia de viver. Esperava que ninguém reparasse no calcanhar de Aquiles que lhe denunciavam as mãos nervosas e os olhos inquietos procurando onde pousar. Naqueles primeiros segundos do dia, onde se resumia ao inato e se esquecia de ser obra por não ter ainda acordado, denunciava sem precisar sequer que a olhassem o preciso oposto da sua construção. Ela andava em passos lassos e não sabia o caminho.
Usava máscaras por força de não sucumbir ao que na verdade estava longe de ser só alegrias. Ela queria apaixonar-se, mas achava que o amor não era coisa para ela, afinal de contas, só amavam a sua criação. Pelo menos assim achava. Ela achava que ninguém via que a pedra também estala, que o equilibrista também cai.
Ela tinha tanto medo como falta de não ser sozinha. Tão depressa se consumia por encontrar quem lhe desfizesse as pétalas da segurança pintada e lhe segurasse o mundo bambo sem ter pressa, como fugia a sete pés e mais quantos tivesse, de estar na mão de alguém. Ela tanto queria como tinha que ir embora. Ela tanto queria que lhe decifrassem os olhos de uma vez por todas, como desviava o olhar a medo. Ela tanto queria pousar a cabeça num ombro que se confessasse seu, como se levantava e voltava a vender o filme de uma vida feita, à laia de viver.
Ela recusava-se a reconhecer que o mais improvável saltimbanco da sua vida tivesse visto a pedra partir, o peito chorar, os olhos pulsar, as mãos florescer, a alma despir-se. Mas ela queria. Ela todos os dias queria. E ela todos os dias ao cair a cascata de cabelos de musa na almofada esperava poder entregar-se. Mas ela não sabia se não ser escultura, à laia de viver.
E no fundo ela queria que a soubessem ler em segredo, que a deixassem manter a pele de pedra estalada como um casaco de confortos. Ela queria que lhe soubessem deixar ser eterna contradição e lhe fossem preencher as frestas com fios dourados sem que lhas apagassem. Que lhe preenchessem de beijos os defeitos e lhe adornassem os erros e a ilusão com um amor de filme. Que o desfizessem só ao fim do dia, como quem desfaz as tranças do cabelo antes de dormir. E que aí pudesse rasgar a pele e não ser nada se não amada e criança e feliz.
Ela esperava que a encontrassem e a soubessem levar em silêncio. Ela brincava às escondidas, à laia de viver.