E entrei de novo... entrei no quarto... a porta gemeu como quem chora de puro rancor, eu deixei-me cair no chão, no tapete estavam marcadas as garras do animal revoltado contra o mundo, o chão riscado, ferido pelos desgostos de quem se deixa absorver por ele...As janelas choram gotas de água secas, marcadas no reflexo dos pensamentos que revejo e volto a rever, lá estás tu, dançando na chuva, eterna criança mulher, sorris para o céu como quem espera ser beijada por um anjo... rainha dos pensamentos, de fantasias, de sonhos, de sentimentos...O piano toca, ou parece tocar, vejo o pó levantar-se das teclas num bailado de vultos majestosos, chora e soluça, conta histórias de mistério, de paixão, de fogo, amor, solidão...E eu escrevo, escrevo os pensamentos que correm na esperança que os venhas ler, nos sonhos, nas fantasias, que me venhas conhecer...E eu... eterno escravo da mente... penso, afundo-me e nado, no mar infinito que é a imaginação...Rio, salto, choro, gemo, sinto, vivo...De sentimentos vive a escrita...De escrita vivem os meus sentimentos... é sede... é fome... é vício... necessidade de alimentar a alma para que não volte a cair no precipício.Cada nota do piano, cada choro da janela, cada sorriso teu aos anjos me inspira sentimento, essa dança, esse bailado dos majestosos vultos que voam, será outrora o romance das nossas almas que ecoam, num quarto vazio, que irá estar cheio de esperança, nas paredes caiados, histórias de tumultos passados, um que escrevia, à luz daquilo que sentia e outra que sorria, por gotas de chuva molhada, que dança, que rodopia, à espera de ser beijada.
Saudades vão, saudades voltam,Como ondas de espuma que contra a costa se revoltamE recolhem para o mar,Para outrora voltar.São como o predadorQue sai à rua para caçar,Ele a correr tropeça,E mesmo se ela lhe foge,Volta sempre a atacar.Saudades são como o rioQue a rocha quer desgastar,Tanto insiste, tanto insiste,Que acaba por furar.Saudade de ti, ó estrela,Que brilhas no céu da minha mente,Saudade de ti, cor da minha aguarela,Lágrima que me escorre pela cara, lentamente.Saudade de ti, predadora,Que atrás da presa corre,Saudade de ti, ó rio,Que pelas veias me escorre.E saudade, predadora,Para me caçar voltou,E saudade, rio que a desgastar demora,O meu coração furou.
Acordei mais uma vez, mas não apenas outra... mudei... estou diferente... segundo o que se diz por aí nesse mundo de vermes que rastejam como eu dentro de sorrisos vestidos, depois de adulto já não se cresce, mas tenho a sensação que a minha alma cresceu, os anjos saltaram felizes da cama para fora e deixaram que visse por uma fresta entre as nuvens um raio de Sol brilhar...Não me lembro de ter sonhado, nunca, desde que comecei a preencher a alma com aquela alegria dissimulada... e agora que se acabou tive um sonho... como uma memória de criança inocente que me transportou para um mar não mais de tempestade, agora pacífico, de um sentimento a que "esses" habituados a viver chamam "esperança"... pelos menos é essa a vaga recordação que tenho de um sentimento tão distante até hoje...Agora que olho para trás sinto desprezo, repugnância e nojo daquele verme que eu era... rastejava no chão sem força para me levantar, agarrava a garrafa e ficava feliz na ilusão que tinha conquistado um par de asas que me levassem a voar para além do horizonte deprimente em que vivia desequilibradamente, quando no fundo apenas tinha conseguido uma carta branca para a deterioração da minha própria alma... o meu espírito era corrosivo contra mim mesmo... agora em frente ao espelho grito-te a ti meu velho eu que estás preso nessa inércia "És desprezível, metes-me nojo!!"Larguei a âncora no fundo do mar deprimente onde vives e ficaste agarrado a ela com a fraqueza e cobardia típicas desses parasitas sem futuro com tu...Eu, o meu novo eu nadei com todas as forças libertei-me dessas cordas que me amarravam como tentáculos fortes de um polvo... e cheguei à superfície... agora vejo que a vida terrena é linda, tal como aqueles contos que a mãe me contava em criança, junto à lareira... um leve cheiro a nozes e pão acabado de cozer vem-me à memória e fazem bater o meu coração com uma coisa que se bem me lembro se chama "emoção"...Mas vou mudar, seguir em frente e encontrar as verdadeiras asas... no lugar da garrafa, ponho agora na fresta, não mais dos cobardes, mas dos apaixonados, folhas de papel e uma caneta... pois o meu refúgio será a escrita... não um refúgio da deprimência, agora um refúgio deste paraíso, para criar outro, ainda melhor...
Acordei... é de manhã... dizem que o céu está limpo, que o Sol brilha, que está bom tempo, mas eu só vejo nuvens negras, escuras, deprimidas e deprimentes, tal como a vida que levo. Para mim o céu continua a chorar, como a minha alma... eternamente…Não vieste, não te tenho, nem sei se algum dia te vou poder ter nos meus braços, envolver-te em carinho e ver a tua aura brilhar, mais forte ainda que o Sol escondido por detrás destas nuvens tristes, os lençóis dos anjos chorosos, desesperados como eu... por vezes pergunto-me se existe mesmo Sol lá ao longe no reflexo da janela, ou se é apenas mais uma ilusão distante como o dia em que tu chegas e pintas de cor a minha vida com a tua aguarela...Agarro-me à garrafa, vazia como a minha alma, como o meu coração, como a minha esperança de viver... as lágrimas de outros choros secaram, talvez tenham achado que já não fazias falta aqui, minhas eternas companheiras nesse peso de viver, quem me dera poder-me evaporar daqui como uma lágrima triste e sozinha... e molhada... sim, sinto-me molhado, encharcado, submerso em humilhação, cobardia, deprimência, fraqueza... sentimentos de alguém cobarde... o mesmo alguém de sempre... aquele verme rastejante que se deixa afundar no desespero, que já chegou aos confins do mais profundo oceano e continua a afundar-se na infinidade da tristeza...Abria a fresta dos cobardes, mas está vazia... até a minha esperança dissimulada se esvaziou... o buraco é cada vez mais fundo e as cordas para subir partem-se a cada batimento do meu coração, despedaçado pelas lágrimas que continuam a embater no chão...Pergunto se algum dia virás e a pergunta ecoa no ar... o tapete já rompeu com tantas garras marcadas, garras do bicho que continua escondido dos olhos impiedosos do mundo... a resposta é um silêncio sinistro... ouço a garrafa rebolar pelas tábuas de madeira, até ele segue o seu caminho, apenas eu fico aqui parado, sozinho... deixo-me adormecer mais uma vez na esperança que o tempo deixe de correr, que a Terra se decida a deixar de girar e que... num dia perfeito que parece nunca vir... o meu coração deixe de bater...
A porta range, como quem geme de puro rancor, entro no quarto, no ar um abafo, por entre o cheiro a licor… roupas pelo chão… escondendo a tristeza…Olho pela janela, entre gotas de chuva que os anjos vão chorando, vejo nas estrelas o reflexo do teu olhar…Mergulho em pensamentos… e deixo-me afundar… não resisto… entrego o meu corpo ao desejo, sem hesitar…Tremo por dentro, quero sair desta prisão, grito, gemo, arranco os cabelos um por um caídos no chão… desisto… choro, choro como um bicho escondido dos olhos do mundo… por entre as tábuas do chão, abro a fresta, a mesma de sempre, a de mim cobarde, fraco, e tiro a garrafa para abafar a tristeza… ao desenroscar a tampa, mais um gemido ao de leve, triste e constrangido… lágrimas de outros choros escorrem por ela abaixo… embatem no chão como uma bomba, explodindo mais um pedaço do meu coração… as marcas das minhas unhas no tapete exprimem raiva, dor, revolta de viver… já não sei se é verdade… se é sonho ou pesadelo… sinto os teus lábios macios beijando-me o rosto, contra a minha barba áspera que pica, dura como o meu desgosto… sinto a tua mão a passar nas minhas costas ainda húmida… por entre as curvas da tua sensualidade escorrem os pingos de água, da chuva, não das lágrimas, não de ódio, de felicidade…Chegaste da rua, de rodopiar feliz entre os salpicos da chuva, enquanto aqui a chuva é o choro de quem desespera, desiste, não luta… perdi as batalhas… perdi toda a guerra, conto os desgostos pelos cabelos no chão… sinto o desejo do teu corpo, do teu amor, da tua paixão…Deixas-me um beijo num sopro quente e acolhedor… e eu falhado, choro no chão, desespero por sentir o teu doce aroma, por beber o bafo suave da tua respiração…A última gota de licor cai pela garrafa, acabou, assim como a minha felicidade… tudo tem um fim… apenas este sofrimento dura para a eternidade…Rendido de tantas derrotas, deixo-me adormecer… acordo amanhã… na esperança de te poder ter…